1. O QUE FICOU POR DECIDIR
O Acórdão do Tribunal Constitucional sobre o corte nos subsídios de férias e de Natal dos funcionários públicos e pensionistas faz-me lembrar aquela conhecida rábula do Gato Fedorento: “O corte dos subsídios é inconstitucional? É. E o que é que acontece? Nada.”
O acórdão do TC é uma pérola da incoerência e inconsequência. Chega mesmo a ser risível para quem acompanha estas coisas. Pena é que, logo a seguir, olhamos para a realidade e só dá vontade de chorar…
Em primeiro lugar, porque se concentra única e exclusivamente na violação do princípio da igualdade e apenas e só no que se refere ao tratamento discriminatório dos rendimentos trabalhadores da Administração Pública em relação aos rendimentos dos trabalhadores do sector privado. Nem uma palavra para a grave violação do princípio da igualdade consubstanciada no facto de apenas os titulares de rendimentos do trabalho terem de sujeitar a esta redução, enquanto os titulares de outros tipo de rendimentos, como por exemplo os do capital, os não suportarem. Nem uma palavra para a diferença de tratamento das remunerações contratuais dos funcionários públicos e pensionistas em face de outras remunerações contratuais com o Estado, como é por exemplo o caso das PPPs. Nem uma palavra para princípios da protecção da confiança e da certeza e segurança jurídica dos cidadãos, que impede que quem contraiu seriamente (ao contrário do Estado…) os seus compromissos financeiros, possa ver toda e qualquer expectativa legítima defraudada pelo Estado que as devia proteger. Nem uma palavra para o princípio da irredutibilidade salarial… Nem uma palavra para o princípio da proporcionalidade com que devem ser distribuídos os sacrifícios num Estado Social em crise… Nada. Sobre tudo isto nem uma palavra.
2. A LIMITAÇÃO DOS EFEITOS DA INCONSTITUCIONALIDADE
Em segundo lugar, porque ao fazer uso artificioso do mecanismo da limitação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade vem despudoradamente estabelecer que tal declaração afinal não produz efeitos durante o ano de 2012. Mais: não só o faz em relação ao subsídio de férias (já entretanto propositadamente extorquido) mas também quanto ao subsídio de Natal, cujo prazo de pagamento, porém, só ocorre daqui a cerca de 5 meses. Ou seja, e em suma, neste Acórdão o TC declara que foi inconstitucional o corte no subsídio de férias e que também será inconstitucional o corte do subsídio de Natal, mas logo decreta que o produto do “gamanço” não é para ser restituído às respectivas vítimas! É de pasmar!!!
Já era mau ver o TC deixar que os efeitos da norma inconstitucional já produzidos sobre corte no subsídio de férias pudessem ser salvaguardados. E digo mau porque só se pode restringir efeitos da declaração de inconstitucionalidade quando “a segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excepcional relevo” assim o dite… E se analisarmos cada uma destas possibilidades chegamos a conclusões que têm muito pouco a ver com o espírito da Constituição.
Se o TC o faz com base na primeira possibilidade foi porque entendeu que a segurança jurídica que deve ser protegida não está em quem contraiu seriamente os seus compromissos financeiros com base em expectativas legítimas, mas no facto de a norma que ele próprio declara inconstitucional já ter sido aplicada durante um determinado lapso de tempo e isto ter efeitos nefastos sobre as contas públicas. Mas que culpa têm afinal os trabalhadores da Administração Pública que a maioria parlamentar tenha feito aprovar uma lei que sabia de duvidosa constitucionalidade?! Que culpa têm afinal os funcionários públicos que o PR não tenha requerido a fiscalização prévia da constitucionalidade da norma como lhe era exigido?! Que culpa têm os funcionários públicos que a lastimável saga da eleição dos três novos membros se tenha arrastado o tempo suficiente para que o Acórdão sobre esta questão só fosse proferido depois do subsídio de férias já lhes ter sido extorquido?! Que culpa têm os cidadãos atingidos que os juízes, que se encontravam na plenitude das suas funções quando a questão foi suscitada, se tenham recusado a decidir a questão atempadamente?!
Se o TC o faz com base na equidade então estamos perante a esquizofrenia total. Então não foi justamente com base na violação da igualdade que o TC declarou a inconstitucionalidade da norma?! Como pode então usar o argumento da equidade para salvaguardar efeitos durante um ano de uma norma que ele próprio declarou desigual e, por isto, inconstitucional?!
Resta-nos apenas a possibilidade do “interesse público de excepcional relevo” consubstanciado no facto de a devolução dos subsídios de férias terem um impacto incomportável no actual estado das contas públicas. Mas mais uma vez cabe perguntar: Não é isto em si a desigualdade que o próprio TC reconhece existir?! Porque é que apenas uns têm de suportar os sacrifícios que devem ser distribuídos por todos?! Que culpa têm os funcionários públicos que a maioria tenha feito aquela norma, o PR não tenha suscitado a sua fiscalização prévia e o TC tenha demorado analisar a questão em sede de fiscalização sucessiva?! Porque é que têm de ser apenas alguns cidadãos a pagar os desmandos de todo este processo?! Porque havemos de sobrelevar o interesse público do cumprimento das obrigações relativamente a credores internacionais em detrimento do cumprimento das obrigações relativamente aos funcionários públicos que são credores do Estado por efeito da inconstitucionalidade da norma dos cortes e repristinação da norma que lhes garante o pagamento dos subsídios de férias?! Como pode o TC – guardião último da constitucionalidade – afirmar despudoradamente que a única justificação para o fazer é o Memorando da Troika, quando isto representa colocar a Constituição na gaveta durante aquele tempo e substituí-la pelo memorando?! Como pode o TC afirmar isto se o próprio Memorando teve o cuidado de dizer explicitamente que as medidas a adoptar têm de salvaguardar o respeito pela Constituição?!
Mas o que é mesmo, mesmo mau e incompreensível é que o TC faça protelar os efeitos da norma declarada inconstitucional sobre factos que só ocorrerão no futuro, ou seja, que o TC permita que a norma que ele próprio já considerou inconstitucional possa produzir efeitos no subsídio de Natal, cujo prazo de pagamento só ocorre daqui a cerca de 5 meses. Com isto o que o TC está a dizer é: A norma é inconstitucional, mas em 2012 produz todos os efeitos que uma norma conforme constituição produziria (?!). Não há precedentes na história da jurisprudência do TC de tal aberração jurídica. Tanto mais quando o Tribunal o faz recorrendo a um único argumento de ordem política e não jurídica: a redução do défice. A feitura deste tipo de considerações, que manifestamente não lhe incumbem, representa uma violação básica do princípio da separação de poderes. Ao TC incumbe apenas apreciar e declarar a inconstitucionalidade de normas que não cria; não cabe fazer considerações sobre o resultado político de opções feitas por outros órgãos constitucionais aos quais devia caber a preocupação de, quando assumem uma determinada opção, fazê-lo no respeito da Constituição. Por outro lado, está por demonstrar que o facto de se encontrar a execução orçamental de 2012 já em curso, - e tanto mais que está apenas no início o 2.º semestre do ano - inviabilizasse a adoção atempada de outras medidas alternativas, universais e equitativas, que contribuíssem para o objetivo da garantia da solvabilidade das contas públicas (tendo sempre por seguro – insista-se – que ao TC não cabe qualquer opção nesta matéria)
É a inversão total de qualquer lógica da legalidade, a descredibilização total do Tribunal Constitucional, é a machada final no Estado de Direito. Passamos a ter um TC que serve para legitimar tudo o que lhe aparecer. Acabou o império da lei, legitima-se o império da força e da revolta... Depois não se queixem…
3. A LIÇÃO AO GOVERNO
Finalmente, este mesmo Acórdão, da forma como enquadra e proclama o princípio da igualdade, no fundo está é a ensinar o Governo, e a legitimar a priori as respectivas medidas, sobre como deve igualizar “por baixo”. Está a dizer a Passos Coelho que se para o próximo ano ele retirar os dois subsídios a todos os trabalhadores por conta de outrem, sejam eles públicos ou privados, poderá desde já contar com a chancela do TC. Foi só para isto que o Acórdão serviu. Se nenhuma das consequências da declaração da inconstitucionalidade da norma acontece de facto (o subsídio de férias não é restituído e o subsídio de natal será cortado na mesma) é legítimo pensar que o TC apenas proferiu uma decisão para ensinar o Governo como é que deveria fazer no futuro e não ter chatices com ele. São os Juízes do TC travestidos de consultores jurídicos do Governo. Onde isto chegou…Louvado seja Deus!
Claro que Passos Coelho não perdeu tempo nem oportunidade política: “Eu nem queria cortar os subsídios a todos… mas aqueles senhores do TC dizem que tem de ser assim… Lá vou ter de fazer um imposto extraordinário… e tal e coisa e coisa e tal”
O que não percebe é que estas medidas só aplicadas aos funcionários públicos já demonstraram ser desastrosas para o mercado interno e para os objectivos da própria troika relativamente ao défice. Alarga-la aos trabalhadores do sector privado é agravar ainda mais o problema. Valha-nos o Memorando da Troika que, já que vale mais que a Constituição, estabelece limites para a consolidação das contas pelo lado da receita. Onde haveríamos de chegar… Os senhores da Troika a advogarem melhor os nossos direitos que os Juízes do TC. Alevá com jête!
Post Scriptum: Eu juro que queria escrever sobre outra coisa… Mas os telejornais não deixam.