terça-feira, junho 2

Sinais dos Tempos

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A vulgarização do debate sobre a Justiça teve mais um notável contributo populista com o show de ontem arbitrado pela Fátima Campos Ferreira no canal 1 da televisão do Estado. Podia ter sido um combate de wrestling na SIC Radical que o tom belicoso era o mesmo, apesar da farpela dos intervenientes ser assaz diferente. Mas, não vou, nem quero, ironizar ou satirizar num domínio tão sério como a Justiça. Não vou, nem quero, adjectivar o Senhor Bastonário da Ordem à qual pertenço e que até há bem pouco tempo era uma instituição venerada como uma reserva moral do Direito e um farol de dignidade para a Advocacia.
Vou só deixar duas notas de registo a comprovar a deriva populista e de autofagia que se vive na Ordem.
Recentemente o Senhor Bastonário, naquele tom que é contrário ao que se espera do figurino, veio brandir a espada flamejante da sua justiça contra a aristocracia da Advocacia com linhagem estabelecida em Lisboa. Não especificou, identificou, ou exemplificou de quem se tratava e qual era o objecto da cruzada pela qual se movia. Contudo, traçou uma estratégia para atacar essa gente passando, nomeadamente, pela extinção dos Conselhos Distritais! Note-se que não se trata de auto-regulação entregue nas mãos do Senhor Bastonário dado que os Conselhos Distritais decorrem de estatuto normativo em forma de Lei da Assembleia da República, como se conclui numa rápida consulta da Lei 15/2005 de 26 de Janeiro que aprovou o recente texto do Estatuto da Ordem dos Advogados. Prevê assim a Lei a existência de 7 Conselhos Distritais: a) Lisboa; b) Porto; c) Coimbra; d) Évora; e) Faro; f) Açores; g) Madeira. Ora, para acabar com a maligna aristocracia alfacinha vai-se extirpar a legitimidade dos restantes Conselhos Distritais! Puro populismo da mais terreira demagogia! Os Conselhos Distritais são órgãos da Ordem dos Advogados que representam e exercem a autonomia e a descentralização, nomeadamente, perante o Largo de São Domingos que é o Terreiro do Paço da Advocacia. Tudo isto não só contra os respectivos colegas das Distritais mas, principalmente, contra os cidadãos, limitando o acesso ao Direito que é potenciado pela proximidade e consultadoria dos diversos Conselhos Distritais. Como a mais elementar lógica comprova esta é apenas uma performance populista, e até contra legem, que atenta contra o Direito Fundamental de aceder ao Direito bem como à esfera de legitimidade da autonomia local dos Conselhos Distritais que foram eleitos democraticamente em listas próprias. É até um paradoxo e uma contradição do próprio discurso.
Vamos à autofagia: O Bastonário da Ordem dos Advogados deve, por inerência, defender a classe e promover a sua dignidade. Ontem, caso dúvidas ainda subsistissem, ficou provado à saciedade que o actual Bastonário assumiu como missão atacar a própria classe a que pertence! Serve de exemplo o acessório, mas significativo, pormenor de ter sugerido que era preciso acabar com o privilégio do atendimento preferencial dos Advogados nas repartições públicas! Neste pormenor está todo um programa que vê o exercício da profissão como um privilégio pessoal. Mais, o Senhor Bastonário para ilustrar o putativo privilégio lá fez o número para a câmara 1 de que os Advogados, nos citados lugares, passam à frente de grávidas, senhoras com crianças e idosos! Não só é populismo como é uma falsidade. O atendimento prioritário ou preferencial nos serviços públicos dos profissionais do foro (sem esquecer os Solicitadores) existe para servir o cidadão que é patrocinado por um Advogado e também existe nos termos da Lei para outras situações em que tal prerrogativa se justifica. Para os Advogados decorre do n.º 2 do art.º 74º do próprio Estatuto nos seguintes termos: "Os advogados, quando no exercício da sua profissão, têm preferência para ser atendidos por quaisquer funcionários a quem devam dirigir-se e têm o direito de ingresso nas secretarias, designadamente nas judiciais." Para os restantes casos de atendimento prioritário e preferencial também dispõe a Lei, neste caso o DL 135/99, de 22 de Abril, que deve ser dada prioridade ao atendimento de "idosos, doentes, grávidas, pessoas com deficiência ou acompanhadas de crianças de colo e outros casos específicos com necessidades de atendimento prioritário." e também que os "portadores de convocatórias têm prioridade no atendimento junto do respectivo serviço que as emitiu." (vide art.º 9º da citada legislação). Tudo isto é de elementar razoabilidade e decorre da Lei que agora o Senhor Bastonário pretende alterar como se estivesse mandatado para ser Legislador. Porém, este e outros actos de voluntarismo agradam a populaça que vê neles um acto intrépido de coragem contra os poderes instituídos. Não enxerga, a mesma populaça do prime-time, que estas derivas populistas, demagógicas e de ataque a uma classe profissional que, tradicionalmente, defende os direitos de todos nós é, simultaneamente, um ataque ao Estado de Direito. Não compreende a mesma populaça que este estilo de recorrente manipulação das normas estatutárias e legais, designadamente, a pretexto de supostos privilégios de classe, é uma falácia e um retrocesso no acervo civilizacional e democrático que só não agrada a quem tem uma visão autocrática do exercício do poder. Mas, como tudo isto, e muito mais, é do agrado das audiências e da massa que sustenta e se revê no oportunista estilo justiceiro, não tarda e teremos para breve as cenas dos próximos episódios de um Bastonário da Ordem dos Advogados que representa, e bem, a era de Sócrates. São ambos sinais dos tempos que vivemos e estão aí para durar.

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