domingo, junho 14

In Memoriam

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Não o conheci mas venerava a sua face como cronista do advento deste novo milénio. Não me revia no espelho das palavras que escrevia. Mas senti-as sempre, e bisava a sua leitura, pois a primeira impressão do que lá estava infectava-me a alma com a saudável inquietação da reflexão sobre as epístolas semanais que Armando Medeiros publicava no
Expresso das Nove. Foi um dos melhores colaboradores do Jornal. A idade nunca foi um pretexto para transigir com os poderes instituídos deste ou do outro mundo. Nunca perdeu a chama e a pulsão de uma juventude que ambiciona um outro mundo mais justo e mais civilizado. Espero que tenha encontrado esse lugar e se ele existe estará por certo justamente "na mão de Deus, na sua mão direita." Neste Domingo, em que recordamos o 7º dia do seu desaparecimento, recordo também Antero de Quental e com as suas palavras rezo: "Dorme na mão de Deus eternamente" saudoso Prof. Armando Medeiros. Em memória do mesmo aqui fica, no registo lapidar do ilhas, uma das suas melhores crónicas publicada no passado dia 18 de Abril no Expresso das Nove.
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"Santo Cristo Recuso-me, por sistema, a falar do Santo Cristo do Convento da Esperança. Sou micaelense demais, acho eu. Cresci com Ele e a ouvir falarem-me d'Ele, até ser levado a pensar que Deus era uma coisa, Cristo uma outra, e o Espírito Santo uma terceira, cada um deles com os seus seguidores e os seus fanáticos como outros tantos clubes de futebol. Milagres, nunca me deixei perder nem achar por eles. Tive uma avó abençoada com a verdade cristalina das crenças que valem, realmente, a pena, a qual me ensinou que somos nós próprios que os fazemos acontecer, porque não há, em nenhum deles, truques de magia nem fadas madrinhas trocadas por santas. "Cair não é pecado", dizia-me ela. "Pecado é uma pessoa deixar-se ficar no chão". E, pela minha vida adiante, foram precisos milagres para me levantar dos fundos incalculáveis em que caí por mais de uma vez. Obrei-os eu, os milagres, com a lembrança de minha avó. Também com a ajuda de Deus? É Capaz. "Mas olha que Ele, por si, não faz outra coisa senão lembrar-te que te deu o poder de fazer milagres".

Não sei, portanto, se sou Cristão. Acredito num homem que se afirmou o Cristo, o Messias, e que foi coerente consigo e com tudo o que pregava até ao último momento, o sangue derradeiro, a agonia final. Admiro-o por isso. Era filho de Deus? Decerto. Como aqueles que o ouviram, negaram, seguiram, bajularam, traíram e pregaram numa cruz por razões meramente políticas, capazes, já nessa altura e ainda hoje, de uma perversidade irracional e peçonhenta. Foi o próprio Deus, encarnado, que crucificaram? Não sei. Se é verdade, como apregoam os padres, que continua a fazer cada um e cada qual a pagar juros pelo que lhe fizeram, não, não era Deus. E, a mim, sinceramente, que me interessa que não fosse? Existiu, deu a cara, entregou o corpo, mudou o rumo das coisas no mundo inteiro. Que diferença faz aquilo que mais tenha sido?

Nem sei se sou Católico. Só conheço ódio, malvadez, inveja, vinda dos Católicos. Não sei de mais nada que cobardia e comodismo dos que se dizem Católicos não praticantes. Não leio senão horrores, intolerâncias, crimes, intrigas e mentiras da Igreja Católica. Nenhum dos seus vigários, e muito menos o Papa, me dá conta de fazer, exactamente, aquilo que o Cristo, que eles querem que seja Deus, rogou, pregou, implorou que se não fizesse. Onde entram os ouros do Vaticano e o tesouro do Santo Cristo na pregação de humildade do homem que, a ter sido Deus, podia ter tido quanto quisesse? Que Divindade católica, e não cristã, é essa que se deixa subornar pela autoflagelação, por promessas inconcebíveis de cumprir, por ofertas em numerário e capas bordadas a madrepérola e a safiras? Que bispo é esse que, não contente com a Diocese ter proibido, em 1976, a exibição de uma média metragem que produzi e dirigi para a RTP-Açores sobre as falsidades desta 5ª Dominga depois da Páscoa, tolera o medievalismo do meu pobre povo fanático, que o é, porque mais não sabe nem vez nenhuma foi conveniente que soubesse, sem que instrua os seus acólitos a dizer-lhe que, para o Santo Cristo, nada daquilo a que se sujeita é manifestação de fé, mas sim de idolatria? Que seita é essa que não permite que o andor onde segue o Cristo seja carregado por gente humilde, e o torne exclusivo da nata de uma sociedade que já não tem razão de existir senão de suas portas adentro e na celebração dos seus casamentos consanguíneos? Que clero é esse, o dessa seita, que, ao fim de percorrer a cidade, numa procissão de horas, oferece um beberete a restaurar as forças da Irmandade, mas não a de quem se arrastou de joelhos ou carregou pesos descomunais de círios?

Que gente é esta, meu Senhor Santo Cristo dos Milagres dos meus tempos de menino que, à sombra de festejar o teu nome e o teu martírio, se empanturra de carnes, de frangos e de vinho, nas dezenas de comedouros em redor da tua igreja? Que seita permite que ardam milhares de lâmpadas, noite dentro, durante quatro dias, numa terra onde ainda há fome e desespero, e onde cada recurso financeiro devia ser utilizado para limpá-la de salteadores, drogados, delinquentes e gente que se vende a céu aberto ou pela calada da noite?

Uma única mulher me liga a essa seita. Tenho tentado reger a minha vida pela de Maria de Nazaré, que criou um filho no martírio diário de saber que ele pertencia a todos, menos a Ela. Não necessariamente pela conversa com um Anjo. Muito menos por ser considerada, por uma força, virgem, só porque um dogma o exige. Que teria Ela de menos santo, se tivesse concebido o Cristo segundo as leis da Natureza? Ninguém melhor que uma mãe conhece o filho que gerou. E Ela, decerto, se apercebeu, daquilo que esperava o seu menino, o seu adolescente, o seu jovem adulto. Escondeu-se, discreta, em lágrimas silenciosas, no quase anonimato que Ele terá, talvez, exigido, ainda que sem lho pedir. Tudo calou, porque assim o fazem as mães que sabem os filhos politicamente imprudentes, mas necessários, sonhadores inveterados, mas sonhando sonhos de justiça social, nascidos não para chefes, mas para mártires. E só apareceu, publicamente, como Sua Mãe, no caminho para o Calvário, e, depois, desfalecida aos pés da cruz, à espera do suspiro final.

Maria de Nazaré e o filho, Jesus, são meus amigos de infância. E, talvez por ter ouvido dela, e pela boca de minha avó, aquilo que deve, na verdade, ter acontecido, nesses dias aziagos de tortura, injustiça e sangue, e talvez porque me tenha habituado a tratá-lo, a ele, por tu, e, portanto, a nunca ter tido medo dele, não sou Cristão nem Católico, tal como costumam ser entendidas essas palavras. O que me traz uma tranquilidade imensa, colorida, cheirando a alfazema dos campos. E me faz também ignorar as festas do Santo Cristo. "
ARMANDO MEDEIROS - 1938-2009

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