Tenho os pés transpirados, a t-shirt tingida pelo dia santo e uma pequena dor no peito que ainda não sei bem de onde cresceu. O nascer do dia passou há pouco por mim, era forte mas transparente. Fazia-se acompanhar de uma caterva agitada que bloqueava a rua que vai para o rio. Tenho cinco minutos para respirar enquanto o trânsito reformula o caos. Larguei os cheiros, o barulho intenso, o calor e a fome e, por fim, deixei que o tempo de respirar se esvaísse na curiosidade polida, nos olhos da mulher que carrega às costas a dor do plástico semeado pelo chão. Ao retomar o fluxo, a artéria empurra-me pela escadaria e tenho finalmente o rio a meus pés. O desafogo do passo que varre a margem, clarifica o ritual da velha que, no travo milenar da corrente, purga a última falta cometida. As palavras embrandecidas na sua boca repetem-se com as ondas que lhe chegam aos pés e com elas estabeleço-me nessa frequência da imortalidade. O silêncio na distância que contempla os dois passos que nos separa, é tão fecundo como a disparidade que nos reúne. Posso render-me a esse lugar e habitar-lhe de forma eterna, no sumo dos seus silêncios haverá sempre um travo dessas especiarias que nunca hão de crescer no meu quintal.
De silêncio em silêncio, o cheiro da luz que rompia o fumo numa escadaria mais ao fundo parecia cada vez mais presente. A cinza espalhada no chão, o resto daqueles que cumpriram o sonho de morrer naquela cidade, entranha-se-me pelos poros. Pesa-me nos pulmões. Há uma cítara cá dentro que dá um sabor especial a essa visão das ondas de calor, que escondem o rosto do homem que ateou o fogo pela purificação. Deixou escorrer a alma alheia para o fim do ciclo da reencarnação. O peregrino que procurou a vida eterna entregando a morte à cidade sagrada, tinha finalmente o lençol branco humedecido na fonte a separar-lhe a pele da lenha seca. O pouco que lhe sobra da família, cobre triste a escada da fogueira.
Pepe Brix
[Pepe Brix parte da sua terra natal, a Vila do Porto em Santa Maria, para a captação do mundo nas valsas de luz e sombra da sua objetiva. O seu trabalho é para ser sentido, aqui. Também em breve, perto de nós, na galeria Arco 8.]
3 comentários:
Cara Lisa Garcia
A fotografia pode ser só, a entrada de luz para o escuro da película, mas aqui é alcançada outra dimensão, é quase como uma sinfonia de luz e sombra que se cruza numa dança, realçando o contraste e a vida com alma...
Este é um exemplo que o artista não sufoca só numa arte, a fotografia não necessitava do adorno da palavra, mas aqui não é exagero é a junção perfeita da imagem e da palavra que não se limita a descreve-la(não era necessário)mas acrescenta poesia e graça...
Soberbo é mesmo ser um Mariense a dar-nos, tamanha verdade e beleza.
Parabéns ao Fotografo e a Lisa que se associou neste texto ao seu trabalho.
Saudações, Açor
Caro Açor,
Nem sempre tenho dado seguimento ao diálogo na caixa de comentários - penitencio-me, pelo muito valor que reconheço, com gratidão, ao diálogo. Concordante ou discordante, certo é que o diálogo é estimulante, tantas vezes elucidativo e outras tantas vezes, enriquecedor.
Nem sempre tenho podido alimentar o diálogo, lamento.
A palavra do Pepe Brix é, realmente, um tesouro que nada tira e sim acrescenta à mesma alma com que ele fotografa. Cheguei ao conhecimento do Pepe pelas suas fotografias, o que me levou a organizar e promover a exposição que vai inaugurar na Arco 8 em breve, mas foi ao ler as suas palavras, nessa ligação umbilical com as suas imagens, que eu soube que o meu espaço no :Ilhas, era dele.
É que o Pepe escreve vindo "do mesmo sítio" de onde fotografa. É algures no interior dele, mas ele permite que olhemos através do seu olhar bonito, também pela palavra.
Cara Lisa Garcia
Antes de mais os meus agradecimentos
pela resposta.
É compreensível que as respostas aos comentários são necessariamente um esforço acrescido, neste tempo tão ocupado que foge a todas as necessidades do dia a dia.
Apesar desta verdade é por um lado claro que este dialogo é como diz estimulante e permite maior interesse pela leitura.
Não obstante esta realidade compreensível, fico triste que textos tão brilhantes como este,( e outros) fiquem sem comentários, o que ás vezes me faz duvidar da minha clareza de espírito ao comentar...
Pior do que isto, penso que este momento, merecia mais atenção e participação, mas desta critica não pode sofrer a Lisa.
Desabafos à mysProtparte, temos que relativizar a nossa realidade de pequeno lugar periférico e onde a blogosfera ainda é uma "menina"...
Saudações, Açor
Enviar um comentário