quinta-feira, novembro 1

A Testemunha


Nestes dias em que lembramos aqueles que, sendo matéria da nossa vida, já se não cruzam cá connosco, recordo sempre os dedos de árvore da minha avó, a pele terna e macia da minha tia Tatá, os pés do meu avô tentando avançar mais depressa do que o corpo deixava, a M. desenhando a vida na praia, o A. ensinando-me a ler o mundo no firmamento, a vizinha que assistiu de janela à infância deste bairro, a Lhasa cantando no circo a Luz de Luna da Chavela, a voz de Kurt Cobain incendiando os serões da juventude, os gatos que não consegui salvar, o cão a quem devo muito do que sei sobre gratidão e amor, os versos que não soube escrever a tempo para o Manuel António Pina.

E regresso sempre, como quem as lesse pela primeira vez, às palavras de Jorge Luis Borges em «A Testemunha»: «Feitos que povoam o espaço e que chegam ao fim quando alguém morre podem maravilhar-nos, mas uma coisa, ou um número infinito de coisas, morre em cada agonia, salvo se existir uma memória do universo, como conjecturaram os teósofos. No tempo houve um dia que apagou os últimos olhos que viram Cristo; a batalha de Junín e o amor de Helena morreram com a morte de um homem. Que morrerá comigo quando eu morrer, que forma patética ou inconsciente perderá o mundo? A voz de Macedonio Fernández, a imagem de um cavalo rubro no baldio de Serrano e de Charcas, uma barra de enxofre na gaveta de uma secretária de acaju?»

2 comentários:

jv disse...

Quando nos morre alguém, com quem partilhamos vivências, é também uma parte de nós que morre.

Anónimo disse...

Cara Renata Botelho
A morte e a vida convivam connosco como um bailado, em que não se convidou o parceiro da dança, mas ele esta sempre lá, como a nossa sombra à espera de ser figura principal...
Todas as suas, ou tuas(que a escrita virtual, permite esta familiaridade)imagens poderão ser retiradas do baú de alguém que já viveu o suficiente para ter aprendido alguma coisa com a morte, mas acrescenta um fino pensamento sobre ela...
Acrescentava a elas,(com a tua permissão) as do padeiro que trazia o pão quentinho quando ele era entregue na porta e tinha outro gosto, se calhar por ser cozido em forno de lenha, ou da pouca escolha, que perigosamente parece querer ressuscitar, ou de tantas outras profissões que conviviam e marcavam a nossa existência, quase como se de família se trata-se...
Num momento em que a pressa, o consumismo e o lucro, afastam este sentimento lembrar dele é quase poesia abençoada...
Esta dimensão da vida e da morte quase se esvai num tempo em que as pessoas são números e onde a sua morte é quase uma benesse e o aumento da esperança de vida um "castigo"...
Cada um poderá ter a ideia (ou a sua ausência)religiosa que quiser ou tiver, o que não poderá é deixar de exigir à sociedade que tenha cultura e que a promova num testamento que passe de geração em geração para que tudo faça sentido, para além dos números tristes e selvagens da Troika e dos seus testas de ferro, Portas, Passos,Gaspar e Borges...
Parabéns por este post que é um "baptismo" de humanidade não piegas e com imensa actualidade.
saudações.
Açor