quinta-feira, outubro 27

...Ironic

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(...) Passaram-se dias e horas de expediente no escritório e, como era previsível, pelo cálculo das probabilidades, perdeu a aposta que mentalmente fizera consigo próprio. Não tinha tido retorno ao dissimulado apelo do "Call Me" e a gravação em eco metálico no telemóvel informava que aquele número não tinha "voice mail" activado. Ela estava ostensivamente off. Nem resposta a sms, ou a emails, e de nada valera as três voltas que dera junto da alameda de plátanos que guarneciam o café onde ela, noutros tempos, com a pontualidade mecânica de um swatch, comparecia, sempre, às 17 horas para um capuccino e um croissant untado de manteiga com marmelada.


Era uma fantasia pois sabia-a do outro lado do rio Atlântico. Mas ainda assim percorreu aqueles caminhos mergulhado na memória persistente do seu aroma que se desprendia da transpiração da sua pele. Ela estava submersa no espelho de água do seu olhar e ele era incapaz de observar o mar sem pensar no oceano de imprevisibilidades que na vida nos desviam do rumo linear sempre em rota de colisão com as curvas do destino !


Convenceu-se que como boa dominatrice que era, ela também tinha prazer em ser uma excelsa masoquista emocional. Mas, em bom rigor, só podia auto-flagelar-se, e fazer "mea culpa", porque sabia que, ainda que involuntário, ele era um "pleasure delayer". Naquela tarde, ensopado sob o súbito dilúvio que se abatera sobre a costa Norte, abrigara-se junto de um cemitério de campas vazias com estreia, "sine die", mas fatalmente incontornável. Virado de frente para a ondulação que fustigava o Norte, trancou-se em si próprio, e procurou abrigo numa taberna alcandorada no canto da estrada nas cercanias do cemitério. Para aquele improvisado porto de abrigo carregara um saco plástico da loja de conveniência, onde abastecera de carburante, a caminho de nenhures, e onde tinha acomodado a biblioteca itinerante que o acompanhava.


Sempre presente a "Invenção de Morel" como um aguilhão a picar-lhe para partir em busca de uma ilha de evasão. Sempre aquele obsessivo livro e a permanente representação de "Faustine". Sempre a dúvida para quem lia no seu olhar: o que nele seria realidade e o que naquela névoa seria ficção? "Faustine" saberia onde começava uma e terminava a outra. Mas sob tal tempestade só lhe ocorria o poder que "Faustine" tinha de mudar o seu humor e daqueles em quem tocava.


Estava algures, sem remédio, num posto de combustível mas de carburantes etílicos, que ostentava o nome de fantasia "Paradise", em homenagem ao paraíso perdido que a poente prometia o "american dream". Entre um café e uma macieira recordava que também naqueles tristes trópicos, para lá da ilha, no novo mundo, "o paraíso dos homens, tal como tinha sido entrevisto por Colombo, prolongava-se e deteriorava-se simultaneamente no prazer da vida exclusivamente reservada aos ricos". Quem o afirmara fora esse "comuna" do estruturalismo moderno que era Claude Lévi-Strauss. Damn ! Com vista para uma falésia de basalto, lia e concordava com esse ícone do activismo de esquerda o que não era nada bom sinal. Até delirou em comprar uma ruína de pedra ali para aqueles lados do lugar de "João Bom" e dedicar-se à vida mecanizada do campo e das alfaias agrícolas. Um disparate. Ainda maior incómodo sentiu quando no seu caderninho de citações, que folheava sob a violência ensurdecedora da chuva, vira a lápis o implacável axioma de Papini, que em tempos copiara e que com justa malevolência sentenciara : "Os anticomunistas reconhecem, com a sua linguagem e o seu comportamento, que os factos verdadeiramente importantes e dominantes na vida dos povos são os económicos". Sim, afinal o antropólogo franco-judeu tinha razão : "a humanidade está adoptando a monocultura; prepara-se para produzir a civilização em massa, como beterraba". Infelizmente era levado, pela realidade da sua experiência pessoal e dos que vegetavam nas hortas sociais por onde se movimentava, a concluir que essa massificação era uma real trituradora. Tanto era assim que naquele torrão no meio do Atlântico tomava consciência que as pessoas se relacionavam por segmentos. Por exemplo, não lhes repugnava acasalarem com um utilitário, mas casamento só mesmo com topo de gama estandardizado e produzido em série para determinada e exclusiva clientela. Na realidade ambicionavam a materialização de uma mulherzinha troféu, tudo bem plastificado num habitat que pudessem exibir nas redes sociais, arquitectando influências e contrabandeando conveniências. Qualquer desvio dessa curva ascendente resultava em downgrades sociais. Uma lástima preconceituosa aquela terra que tanto amava. Sob a capa de uma falsa tolerância a verdade é que não aceitava a "diferença". Mas quando a "diferença" entrava sem pedir licença porta adentro perceberiam como aquelas torres de marfim, de sólidas convicções sociais, mais não eram do que convenções com a resiliência de castelos de areia. Regressou à memória dos desencontros virtuais e era agora incapaz de apostar se aquele silêncio dela era um resguardo, um defeso intencional ou acidental, como se fosse uma irmã das "carmelitas"? Seria uma forma pouco ortodoxa de gritar: "Stay away" ? Pouco importava, era ele quem pagava a factura de uma aposta perdida consigo próprio. Magnetizou-se no mar que crescia e formava correntes opostas em marés turbulentas no que os "gringos" chamavam de rip tide...Lembrou-se que tinha feito o download do último livro de canções de Beirut e ali ficou a ouvir nos "headphones" “soon the waves and I found the rolling tide / Soon the waves and I found the rip tide”. Para os rapazes do calhau era apenas "mar bravo". Sim, era verdade, a tempestade encapelara-se e junto do calhau os homens, e os rapazes da freguesia, recolhiam ao abrigo mais próximo. Fez pause no mp3 do smartphone e resolveu-se a teclar novamente o número que ela lhe facultara em tempos e que era o único que constava do rol de chamadas perdidas do seu telemóvel. Coisa estranha ! Tinha vontade de a rever mas ela estava longe como o raio e no horizonte apenas pressentia a tempestade tropical que se aproximava. Com um wishful thinking deu por si a murmurar : "até já" !
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obviamente Continua

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