Memória da Vivenda Iolanda, Rua
Sacadura Cabral. Carcavelos e estamos em 1982. A 2ª classe feita no continente,
seguindo a mãe que nesse ano fazia a especialidade no Egas Moniz.
Atravessei a rua. O externato “Cantinho” - alma mater
académica por esse ano - ficava no outro lado do passeio da Vivenda Iolanda, a
casa dos tios que nos hospedaram – os
mesmos tios que nesses anos verdes nos levavam à Festa do Avante e nós, crianças,
de lá trazíamos leques de papel colorido e nenhuma ideologia senão a
fraternidade que unia os primos.
Atravessada a rua, aberto o
postigo que dava acesso à tranca da porta, subidas a galope as escadas de
caracol - “ai, um dia a menina estampa-se nesses degraus!” – Santo Cristo
esperava-me no topo. Assim, todos os dias, todos os almoços.
Maria do Santo Cristo era a minha
cuidadora. Empregada da minha mãe, implorou que a levássemos connosco de São
Miguel ao saber que 1982 era ano que tinha que ser passado em Lisboa. Santo
Cristo era um espírito livre. Verdade. Confere.
A liberdade que cunhava Santo
Cristo como um tesouro luminoso manifestava-se, entre outros, pelo rádio FM
sempre bem alto na cozinha. E foi assim, enquanto a Santo Cristo me assava
miúdos de frango sobre a chama do fogão, enquanto se balançava livre ao som da
música, que eu ouvi pela primeira vez “Amor”.
A memória acordou há pouco, tão
vívida quanto sempre, despoletada por uma reportagem na TV: “Amor”, dos Heróis
do Mar foi editada há 30 anos.
A menina a quem a Santo Cristo
confidenciava os seus sonhos de miúda – a minha Santo Cristo tinha então 19
aninhos!... – ficou assim a saber a história daquele som viciante, largo,
intenso, daquela letra fantástica que ambas cantávamos a plenos pulmões no 1º
andar da Vivenda Iolanda há 30 anos.
Os Heróis do Mar passaram por
algumas inquietações com o seu “Amor”. Foram apodados de fascistas – uma
iconografia patriótica a escassos anos de 1974? Não podia ser – rasguem-se as
esferas armilares e a cruz de Cristo, afunde-se a aventura marítima! Pobres
Descobrimentos, demasiado conotados com o Estado Novo.
E foi assim, por excesso
ideológico (a pior ditadura), que os Heróis do Mar foram alvo de
ameaças de morte nos idos de 1982. Ameaçados pela sua manifestação melodiosa de
homenagem à pátria. Pátria era uma palavra feia nesses anos. Pátria, pátria,
pátria, pátria, pátria. Apetece-me repeti-la, querendo assim livrá-la das
amarras que lhe impõem, passadas, presentes e futuras.
7 comentários:
Belo texto, Lisa!
Belíssimo!
Lisa
este texto é uma pérola.
:)
Cara Lisa
Não basta criticar algumas atitudes, anti qualquer coisa, sem as ligar com a sua história e com a liberdade com que as ideias devem circular, mesmo antagónicas, desde que não ultrapassem o razoável.
Hoje felizmente esta ideia de liberdade é aceite por muitos, não todos e sobretudo não o poder.
Não é exclusivo do pós Abril,nem de Portugal este movimento de critica a ideias contrárias.
Basta atender ao cinema ao teatro e á literatura, todos os movimentos, revoluções e guerras foram criticadas, e em alguns casos bem.
Quem viveu com as manifestações da arte Salazarista e com a ditadura subsequente não viu com bons olhos manifestações estéticas que lhes lembraram este tempo, desde que o debate seja dialéctico e não violento(o que julgo não ter sido) não virá grande mal ao mundo e é dele que os gostos se ajustam.
Hoje é natural que nada disto nos choque mas passados menos de uma década do Nacional Socialismo Português,e menos ainda da reacção violenta dos reaccionários(com a morte de muitos)no pós Abril, não é tão escandaloso esta reacção estética.
Açor
Estimados,
Eu até tenho algumas regras que nunca quebrei, mas sempre é verdade que as exceções confirmam as regras, e por isso eis-me aqui, na caixa de comentários do :ILHAS. Fico contente por existir esta exceção porque ela vê-se possível pela conjugação de dois fatores que me são caros: em primeiro, porque o Nuno Costa Santos e a Renata Correia Botelho se manifestaram e nos termos mais generosos - e eu jamais poderia ficar indiferente. Por outro lado, não me pareceria delicado responder-lhes por outra via, à margem dos leitores do :ILHAS. Por isso, Nuno e Renata, aqui fica o meu abraço do coração.
A outra razão é porque os restantes comentários, apesar de serem de anónimo e "semi-anónimo" (isso existe? Existe pois, é alter-ego), são cordatos e não desviam o tema do posting. Obrigada, Anónimo, pelo elogio - é um facto que sempre gostamos de sentir que escrevemos algo que foi apreciado.
Obrigada, Açor, pela sua contribuição pertinente. Percebo o seu entendimento, embora eu seja talvez menos tolerante a excessos ideológicos, sejam eles de que natureza forem e para que sentido de partes contrárias ocorram, mas sobretudo, é claro, se forem violentos. Neste caso, os Heróis do Mar foram alvo de ameaças e boicotes muito concretos, sem que representassem eles próprios uma ameaça, pelo que se me afigura de lamentar.
Cara Lisa
Agradeço o ter sido englobado na excepção à sua regra, que respeito, mas não concordo, pois seria interessante(e já dei conta disso) que algumas vezes (no caso) a autora, pudesse puxar pelo tema para que ele atingi-se o cerne do pretendido, penso que será sempre a discussão aberta do tema, desde que sujeito ao bom senso e bom gosto.
Justifica-se(na minha opinião)a diferença entre anónimos tout cour e nomes virtuais, pois nos segundos mesmo não se conhecendo a verdadeira entidade do autor, sabe-se que existe um fio condutor uma coerência.
No essencial estou de acordo com o que disse, não descurando que a critica e a discordância devem ter sempre lugar, desde que feitos dentro dos parâmetros civilizacionais.
Saudações
Cara Lisa
O comentário anterior é do Açor
Saudações Açor
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