terça-feira, janeiro 15

Depois da morte metálica



Um livro de 2012 a que volto no início de 2013: "África Frente e Verso", de Urbano Bettencourt (Letras Lavadas Edições). Exercício mais do que corajoso, no duplo sentido. Humano e literário. Escrita sobre a guerra e sobre a forma como esta entrou pelo autor e pelo homem dentro. Poemas antigos, de um livro de 1972. Como este:

 "entre o Uenquem e o Imboé

 entre o Uenquem e o Imboé
a morte era um pássaro metálico
sem cor sem canto
estilhaçando a nossa carne jovem
os nossos nervos os nossos braços
o nosso corpo de amar
      entre o Uenquem e o Imboé
nem um mangueiro nos defendeu
 nesse dia tão grande e vazio
em que o nosso destino foi uma criança
frágil e desamparada
      entre o Uenquem e o Imboé
nada tivemos tudo perdemos
excepto o instinto animal de gatilhar as armas apontadas e matar".

E textos mais recentes (como este de 2011, intitulado "De Mangas e bolanhas"), desenhados com o verbo elegante de Urbano, que permitem perceber o que ficou depois do fumo e das cicatrizes:

 "Sentado à sombra de um mangueiro velho, anterior ao fogo e à morte metálica, verás o tempo escorrer lentamente sobre as mangas e deixar nelas os seus tons suaves, o verde, o amarelo, o rosa. Quando isto acontecer, o Iemena dirá dos frutos maduros e terá recuperado já uma sabedoria antiga para ensinar-te como varejar as mangas altas sem as machucar nem deixar tocar no chão. Hás-de recolhê-las intactas nas tuas mãos, o cheiro delicado confundindo-se, finalmente, com o sabor agreste, para se cruzarem ambos com a tua fome de séculos. Saberás, então, que esse é o teu íntimo cheiro de África, aquele que vais querer guardar para lá de tudo, mesmo quando a memória dos lugares, dos corpos e do sangue se for diluindo na espessura dos dias".

5 comentários:

Anónimo disse...

Excelente livro e escritor. Urbano ficará na história literária desta terra, sem dúvida.

Boa escolha. :)

PS: relevante: Mali.

abr
z

Anónimo disse...

Não sabia que este ex prof de Francês tinha ido pá guerra. :(

Anónimo disse...

Nó na garganta,uma vez mais,ao percorrer o amargo doce destes excertos de " África Frente e Verso"...
Escrita sentida,sentida,bela e inteligente.
Obrigada,vida,por existirem escritores de alma mar cristalina!

Maria Eduarda Barbosa

Anónimo disse...

É verdade Maria. Escrita bela e inteligente. O pouco Francês que sei, aprendi-o com o autor e com uma outra Professora fantástica.

Desejos de uma vida longa e saudável para o escritor Urbano.

:)

Anónimo disse...

Nuno, belíssimo texto sobre os caminhos do África frente e verso. Urbano Bettencourt é um grande escritor de uma prosa poética que emociona e de uma poesia admirável.
Sem me perder nas canadas dos adjetivos queria lembrar que no talento da escrita ele sabe como ninguém usar do humor, da sutileza e da palavra para satirizar (com elegância)momentos e realidades. Gosto muito. Também admiro a tua juventude e talento, a geração que chega e que envaidece os "velhotes",por favor permita que publique no Blog Comunidades?
Grande Abraço.