sábado, janeiro 19

AS BALEIAS, OS BOTES E OS MICAELENSES

Quando a função parece ficar por cumprir, quando nos vemos expostos à voracidade dos dias e à formal incompreensão de muitos, eis que, de quando em quando, damos - verdadeiramente - um contributo (ainda que pequeno, quando comparado com outros), e isso volta a encher-nos de vontade.

Fica, pois, o e-mail que recebi do meu amigo Miguel Cravinho, a propósito do livro de Albano Cymbron e da "identidade açorica" que, na sua inacabada tela, recebe, inegavelmente, uma forte pincelada da "arte da baleação":

«Conforme refere Filipe Mora Porteiro no prefácio do livro “A FASE INDUSTRIAL DA BALEAÇÃO MICAELENSE (1936-1970)” de Albano Cymbron, publicado pelo Observatório dos Mar dos Açores, “(…) se é certo que a baleação teve maior expressão social na Ilha do Pico, a fase industrial atingiu o seu auge em São Miguel, onde se capturaram mais cachalotes, se produziu mais óleo e farinhas e onde a atividade estava mais estruturada”.

Até à década de 30 do século passado regista-se oficialmente três armações baleeiras: Espírito Santo (Capelas), Viveiros & Companhia (Bretanha) e Herdeiros Manuel da Mota Soares (Capelas), constituindo os primórdios da atividade baleeira na ilha de São Miguel.

Em 1936 forma-se a União das Armações Baleeiras de São Miguel, constituída por sete sócios que inclui também as três companhias acima referidas. Inicia-se a fase mais pujante da vertente industrial/comercial do aproveitamento da baleia nos Açores, evidenciando uma caprichosa interligação entre as ilhas, e destas com outras partes do Mundo!

O certo é que a publicação do livro acima referido constituiu uma verdadeira “reposição histórica” absolutamente necessária para se compreender TODA A HISTÓRIA desta importante atividade dentro e fora do Arquipélago.

A atividade baleeira nos Açores, não obstante conhecidas idiossincrasias locais e de ilha, apresenta largos traços comuns, onde se destacam métodos e técnicas de caça uniformes e, em particular, a utilização de um tipo de embarcações muito específicas.

É deste modo, que bote baleeiro constitui o mais expressivo legado do património baleeiro e da cultura da baleação na Região, inspirados na herança norte-americana do séc. XIX.

Os açorianos acabaram por produzir um novo modelo de bote, mais comprido, melhor adaptado às condições de navegabilidade dos nossos mares e ao modelo da caça costeira artesanal que se praticou em todas as ilhas dos Açores, como resultado da capacidade e génio inventivo dos antigos construtores navais.

São Miguel não foge à regra. A utilização dos botes baleeiros constitui um elemento essencial da atividade que decorreu com maior expressão na zona norte da ilha, nas Capelas, mas que acabou por se estender por outras partes da ilha, incluindo Bretanha, Mosteiros, Ponta Delgada, Vila Franca, Ponta Garça e Faial da Terra.

Em Agosto de 1941 foi inaugurada a Fábrica da Baleia nos Poços de São Vicente, Capelas, com vista ao processamento industrial de derivados de cetáceos.

A 6 de Maio de 1948 é fundado a COOPERATIVA DOS ARMADORES DA PESCA DA BALEIA que procede ao levantamento detalhado do material relacionado com esta atividade, incluindo as instalações terrestres e o equipamento marítimo existente em todas as ilhas do Arquipélago.

Neste relatório, refere-se a existência na ilha de São Miguel de 10 vigias, 4 lanchas e 11 canoas baleeiras em atividade intensa e permanente. Em 1951 encontram-se registadas pela UABSM os seguintes botes:

- “UNIÃO II” (1940)
- “SÃO PEDRO”, “SENHORA DA CONCEIÇÃO”, “SANTO ANTÓNIO” (1942)
- “SENHORA DE LOURDES”, “SÃO JOÃO” (1943)
- “SENHORA DE FÁTIMA” (1944)
- “SÃO VICENTE”, “SANTO CRISTO”, “SANTA ISABEL”, “SANTA HELENA” (1947)
Para além das seguintes lanchas de serviço:
- “BOA NOVA” (1926)
- “CAPELAS” (1930)
- “MARIA TERESA” (1933)
- “VEDETA” (1947)

Os botes baleeiros de S. Miguel eram todos construídos na ilha, quase sempre por mestres carpinteiros navais locais.

De acordo com o painel informativo produzido pelo Museu Carlos Machado, que se encontra junto ao bote “SANTA JOANA”, em exposição no Parque Atlântico, Ponta Delgada, “em 1970 estavam registados 16 botes: 7 nas Capelas, 7 em Ponta Delgada, 2 em Vila Franca do Campo e Faial da Terra. Nesta época, trabalhavam nesta atividade 64 homens, dos quais 49 nos botes, 10 nas 5 lanchas e 5 na mítica VEDETA”.

DOS BOTES
Em 2006, no contexto do lançamento do projeto “150 MILHAS DE HISTÓRIA”, desenvolvem-se as diligências necessárias à aquisição de um bote baleeiro, com o objetivo de promover a sua reconstrução no âmbito do programa governamental de recuperação do património baleeiro dos Açores. Este projeto enquadra-se na política de responsabilidade social da empresa de whale watching TERRA AZUL.

        foto: Fernando Coelho

        foto:Marco Raposo

Após meses de intensa recolha e compilação de dados históricos e documentais nos arquivos da Autoridade Marítima de Ponta Delgada (a muito custo!), nos arquivos da Sociedade CORRETORA, bem como, no arquivo privado do Sr. Albano Cymbron - fiel guardião dos documentos da antiga UNIÃO DAS ARMAÇÕES BALEEIRAS DE SÃO MIGUEL (de inestimável valor histórico!) -, foi concretizada a aquisição de dois registos, cujas embarcações se encontravam em muito mau estado de conservação. A transação realizou-se a 17 de Novembro de 2006, conforme comprova o “Título de Aquisição de Embarcação de Recreio”, devidamente assinado e carimbado pelos legítimos vendedores, em representação da empresa CORRETORA: Srs. João Manuel Correia Moniz e João Francisco Tavares Vieira, e o comprador Luís Miguel Vasconcelos Cravinho.

Entretanto, conforme consta nos registos da COMISSÃO DO PATRIMÓNIO BALEEIRO, foi adquirido uma terceira embarcação, com o respetivo registo na ilha da Graciosa, (“SENHORA DE FÁTIMA SG-98-B), com a qual se concretizou o projeto “150 MILHAS DE HISTÓRIA”. O processo, constante na Direção Regional da Cultura sob o número de referência 08.06.01/0002 (04/08/2009), teve a sua conclusão em Setembro de 2010, sendo a reconstrução do bote da responsabilidade do Mestre João Tavares, nas Ribeiras do Pico.

Porém, constituiu sempre um objetivo a médio prazo a recuperação dos outros botes “SÃO VICENTE”, e “SANTA ISABEL”, considerando a situação lastimável (humilhante!) do património baleeiro São Miguel, onde a quase totalidade das embarcações (botes/lanchas) foram negligentemente abandonadas, destruídas ou vendidas para fora – para não mencionar novamente o triste assunto da demolição da Fábrica das Capelas (!) – sem que tenha sido devidamente acautelado o estatuto de salvaguarda do seu interesse público, contextualizado numa visão global do património baleeiro dos Açores.

O projeto de recuperação destes botes está a ser equacionado no âmbito dos apoios à recuperação do Património Baleeiro Regional, ou noutros programas com objetivos similares, podendo ainda ser fomentado a angariação de donativos privados e envolvendo a Comunidade e diversas instituições locais, incluindo Escolas. Esta intenção encontra-se em fase desenvolvimento por um grupo entusiasta deste tema.

Torna-se, assim, indispensável comtemplar as embarcações acima referenciados na listagem de classificação do Património Baleeiro e consequente viabilizar a sua recuperação, pela obtenção de um reconhecimento público relativo ao seu “alto valor histórico e patrimonial para a ilha de São Miguel e para os Açores em geral”.

Esta dinâmica de recuperação de outras embarcações possibilitará a existência de uma frota local, que pensamos ser um fator crítico para a consolidação da vertente desportiva/cultural através da organização e participação em regatas em S. Miguel e noutras partes do Arquipélago, onde estes valores estão já bem enraizados.

Pretende ser, por outro lado, um contributo relevante para a coesão das ilhas e a construção da IDENTIDADE AÇORIANA.»

Vila Franca do Campo
Miguel Cravinho
 
O sublinhado é meu e, como mais lenha para esta fogueira, acrescento os seguintes links:

3 comentários:

Anónimo disse...

Parece que a vida de luta dos baleeiros, homens e botes, se mantém.
No passado era a luta pela vida dos homens. Hoje é a luta pela vida dos botes. Tive a oportunidade de ler o livro e fiquei impressionado com a carga documental que o suporta e a riqueza da historia a que se reporta.
Este livro é mais que contributo para a historia da baleação nos Açores e em S. Miguel, é também um relato sobre a que ponto pode ser levada a visão e o empenho de um homem. as ideias, os projectos, as dificuldades vencidas e as apostas ganhas. Já então a miopia, essa inestimável e tão actual virtude das classes dirigentes,dificultava quanto e como podia mas, também, quanto a deixavam.
Hoje, perdeu-se muito desse espírito lutador que enfrenta as adversidades, que conquista o sucesso palmo a palmo, com esforço e determinação como o faziam os senhores do seu destino.
Mas a miopia, essa até está pior e bem mais disseminada. E, isso é mau? bem, em principio é, mas como gosto de ver o lado positivo das coisas, penso que é uma oportunidade porque em terra de cegos quem tem olho é rei.
Temos vários legados que devemos preservar para as gerações futuras. a Baleação Açoriana é sem duvida um deles, por todos os motivos mas principalmente por um, porque somos contemporâneos duma realidade que não existe mais. somos as ultimas testemunhas vivas, temos a obrigação de garantir a memória futura. Sendo tão importante e tão escasso, o património baleeiro não pode estar sujeito a perder-se por ninharias, burocracias, desatenções, desinteresses, interpretações, faltas de dinheiro ou de visão.
Já se perdeu demais por não se ter feito nada, que não se perca agora por não se deixar fazer.
Que se guarde e reabilite cada prego, cada história, cada tábua, bote, remo ou vela.
Que se elogie e incentive quem o faz e permite a outros a vivência única de velejar num bote baleeiro.

Mário Prieto



Unknown disse...

Na lista de Lanchas de Serviço, falta registar a RAQUEL, irmã da VEDETA. Uma delas tinha o numero de amura PD3TL
Construídas em East Coews na Inglaterra pela Groves and Gutteridge, eram Lanchas de Serviço da Royal Air Force: 60'RAF Service Pinnace. Alguém sabe dos seus paradeiros?
aires.whytton@gmail.com

José Amaral disse...


Vergonhoso… a forma como se destruiu o património baleeiro da ilha, (fabrica)
o mínimo que se poderia fazer, seria reconstruir algo perto da grande chaminé que ainda la se encontra e manter o grande guincho para que não se degrade mais do que já esta.
Ali enquadrava-se bem um museu ou um centro de interpretação no mínimo dos mínimos uma placa com explicação do que aquilo já foi um dia. Mas pode ser que perto das eleições alguém tenha a brilhante ideia de ali por um placar partidário apelado a cultura...