quinta-feira, janeiro 19

HOJE

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Agrestes Abrigos

Estrangeiro em casa. Título certeiro para uma pintura que procura na investigação doméstica, quase sempre difícil e agreste, uma forma de abrigo. Nesta jornada são dois - e complementares - os territórios escolhidos: a arquitectura selvagem do mar e a imprevisível ondulação da urbe. Em ambos o gesto é essencialmente o mesmo e parece perseguir a vontade de se surpreender e de restituir a quem o pratica a sua inerente estranheza.

Numa das séries, embarcações várias, a fazer lembrar no melhor dos sentidos os marítimos e experimentais desenhos de Victor Hugo, e assumindo, tal como estes, mesmo nas hipóteses mais ilustrativas, possibilidades múltiplas (sim, mais uma vez esta pintura é terreno armadilhado para interpretações imediatas). Noutra, pilares, espaços, edificações, entulhos - paisagens povoadas de ruído e melodias pouco óbvias, jazz de formas rasgando um qualquer silêncio original.

O título remete para um conto de Sophia de Mello Breyner Andresen, justamente intitulado "O Silêncio" e convocado por José Tolentino Mendonça no livro "Pai-Nosso que Estais na Terra". Nele, uma mulher é surpreendida por um grito - exterior mas também interno - que altera o seu olhar sobre as suas coisas familiares, transformando-as em objectos alheios e irreconhecíveis, e acaba por atravessar o seu lugar como se não o conhecesse. A narrativa comunica bem com esta exposição, onde coexistem apaziguados botes e navios assustados pela gritaria das ondas. E onde, algures, encontramos uma frágil e solitária figura caminhando à porta do caos. Podia ser a mulher do conto de Sophia, forasteira no casulo. E também o artista, na desconfiança da sua oficina, estrangeiro perante o seu próprio trabalho.

Nuno Costa Santos
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Hoje..AQUI...infelizmente tão longe

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