terça-feira, janeiro 24

...Beyond "Shooting Palermo"

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"(...) mas a Inteligência Divina abarca juntamente todas as coisas.

O passado está no presente, assim como também o futuro" -
Plotino in "Enéadas"
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Imaginemos um homem insone. Um moderno homo laborans. Um homem-máquina que vive contra-relógio. Um workaholic num frenesim urbano e tecnológico, agarrado aos seus gadgets, e que tudo regista a 360º com uma câmara digital...incluindo, por acidente, a própria Morte ! Um ser alienado materialmente imerso nuns headphones conectados no seu mediaphone da Nokia, que não larga um segundo que seja, e cuja playlist da sua privada banda sonora apenas interrompe para mais uma milésima sms de trabalho ou de speed dating. Uma criatura que vive contra-natura, ou seja, negando a si próprio a sua humanidade e o reverso da Vida que é a Morte. Um homem assim é uma bomba-relógio em contagem decrescente pois não se deve ignorar a Morte mas sim o risco da própria Vida! "(...) o perigo não nos vem da morte mas sim da vida. A morte é uma consequência do viver ou do viver demasiado. A força da morte é metafísica, a da vida é real. Não é a morte que mata a vida, mas esta que vai morrendo. A vida é a única força. A morte é uma consequência da sua quebra.". Quem o disse foi António Maria Lisboa, em "Mistérios Medos e Mais Coisas", leitura surrealista, decerto ignorada por Wim Wenders, que em "Shooting Palermo" assina um filme que tem a ambição frustrada de ser "sobre a vida e a morte" e nos apresenta a personagem de Finn que com traços impressionistas caracterizamos como se fosse uma personagem-tipo. A vida de Finn balança entre a distopia organizada e insensível de Dusseldorf, onde o filme começa, e o caos apaixonante de Palermo, onde termina, depois de um penoso registo da decadência do romantismo teutónico.
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A personagem interpretada por Campino - (um rapaz de cenho pós-punk, vocalista de uma banda germânica com o obscuro nome Die Toten Hosen – literalmente "Pantaloni Morti", ou seja, "Calças Mortas" !) – é o já apresentado Finn...um celebérrimo fotógrafo de moda que cumpre com eficácia o caderno de encargos das suas encomendas, mas...Mas, a dado ponto da sua vida, apercebe-se que mecanizou tudo o que faz, e que na engrenagem dessa existência não há qualquer fulgor ou paixão. É eficiente no seu labor, como uma peça de engenharia alemã, bem oleada e encaixada em Dusseldorf, onde vive e trabalha a criatura, - (só por coincidência a terra natal e sede da banda Die Toten Hosen) -. Porém, por baixo da frieza do germânico aço escovado algo lhe corrói a existência. Um mal de vivre que, no fundo, é o relógio biológico que subitamente começou aumentar-lhe as rpm’s. Sugere-nos descaradamente o realizador Wim Wenders com planos de Dalinianos relógios derretidos e outros delírios à Buñuel. Eu diria que é o "tédio" que o ataca. Na verdade, a receita do que lhe pedem no seu ofício resulta perfeitamente estilizada na mentira duma foto de moda mas, por detrás da mesma, no biombo da sua existência, aquilo já não tem sentido...é apenas uma técnica sem qualquer arte.
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Imaginemos este mesmo argumento realizado por um cineasta Italiano e seria decerto uma obra-prima intemporal. Aqui, de contrário, temos uma mão cheia de clichés, uma aguarela em tom de souvenir, com umas pinceladas de um qualquer fresco Italiano impressionistamente tomado de empréstimo e aprisionado pela câmara de um acidental turista alemão. Este alemão, ou o seu alter-ego, aleatoriamente percorre as ruelas de Palermo, no intervalo de uma "shooting session" com uma starlet de ocasião, à mão estava Milla Jovovich, e na encruzilhada picaresca da sua vida desemboca no "Cortile Della Morte", ou seja, em toponímia lusitana aquilo que traduziríamos literalmente como o "O Beco da Morte". Seguidamente, num encontro, sem marcação prévia, algures num jardim suspenso de Palermo este homo laborans, que vive de fotografar o que está à superfície pois "ser" fotógrafo de moda é o que lhe paga o viver, encalha num diálogo casual com uma anciã atracada a uma máquina fotográfica Leica, e vendo-o com uma Plaubel na mão resolve trocar cromos e a conversa é simples como um instantâneo:
"- Que bela máquina fotográfica !" interpela-o a sexagenária entradota ;
"-Pois é! Tenho-a há vinte anos"; "-Esta Leica há quarenta anos que me sirvo dela!" – insiste a matrona;
"-És uma fotógrafa ?" – pergunta-lhe Finn; " - Fotografo Palermo, a vida, a morte..." – responde-lhe a anónima parceira de diálogo; "- Fotografas a morte?"; " – Sim ! Existe muita morte em Palermo"...quem diria !;
"- Porque o fazes?"; "-Para honrar os mortos, para os recordar...para que a lembrança deles não se perca...fala-me do teu trabalho, prefiro!";
Finn faz uma pausa e responde : " -Do meu trabalho? Como é que se diz? Sou um homem perdido!" :
"- Lost? " – questiona a Senhora subitamente poliglota; no mesmo registo Finn alinha no dueto bilingue : " - Si ! Io sono perduto" ! ; remata a velha : "- capisco quello che sucede !".
Fim do take : ciao e uma fotografia a tardoz e o filme prossegue !
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Seria de esperar que nesta fase de perdição um homem assim - ("perduto") - se atirasse da ponte ali tão próxima rumo ao suicídio ! Afinal parecia que não tinha mais objectivos e apenas uma "objectiva" para captar a vida dos outros. Seria o rumo natural do enredo, com um toque de fatalismo eslavo é certo, no qual enxertaríamos uma adequada citação de Tolstói afinal...: "se existir um objectivo de vida, é evidente que a vida tem de cessar quando o objectivo for atingido" -(no caso de Finn o seu objectivo terminava numa grande angular). Bom, mas este filme não é um pastiche da "Sonata de Kreutzer", mas sim um patchwork de caleidoscópicas proporções. Wim Wenders mete lá tudo e não resiste a um palimpsesto cinematográfico que não esconde sequer com pudor a homenagem ao "Sétimo Selo" de Ingmar Bergman, bem lá atrás no retrovisor em 1957, ou a "Blow Up" de Michelangelo Antonioni mais recentemente em 1966. A crítica demoliu o filme e em bom rigor está longe da obra prima que é, e sempre o será, "Paris Texas". Ainda assim é um filme eficaz na forma como nos seduz e secciona o olhar entre a ordem e o caos, entre a placidez de um mar morto e um maremoto em que subitamente se pode transformar a existência e a luta contra a entropia da Morte. É um filme com uma irrepreensível fotografia e uma excelente banda sonora.
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Mas...imagino uma matéria-prima destas nas mãos de um cineasta Italiano e teríamos decerto aqui um filme maior do que a Vida. Mas a Vida, na síntese de Giovanni Papini, no final da sua, nada mais é do que erros e renúncias : "a vida humana reduz-se toda a erros e renúncias. Enquanto somos jovens, os erros são mais numerosos que as renúncias; na velhice, aumentam as renúncias mas nem por isso diminuem os erros", escreveu paradoxalmente o escriba de Florença. Acrescenta ainda como máxima de Vida algo similar ao carpe diem : "Enquanto vives, esplende". Em "O Vigia do Mundo" Papini refere estes versos gregos perdidos no tempo e que são tidos como um epitáfio : "Enquanto vives, esplende". Ouçamos Papini : "Este imperativo parece-me bastante mais belo e profundo do que os mais famosos do Templo de Delfos, de Kant e de Ibsen. Conhecer-se a si próprio é quase impossível e seria perigoso, se possível ; servir com os nossos actos como norma universal é um dos mais inúteis achados do abstruso e obtuso Kant ; a ordem "sê tu mesmo" é uma tautologia que só entre os hiperboreais podem parecer ordens dignas de bronze. Em contrapartida, na ideia de esplender reside a própria essência da vida. Quem não é luz não dá luz e quem não se inflama e não irradia e aquece à sua volta é semelhante a lenha verde ou lama refractária : não vive e não merece viver". Com este argumentário é caso para sentenciar que um cineasta Italiano, com obrigação do lastro de uma civilização que produziu eruditos como Papini, faria decerto deste "Shooting Palermo" uma obra intemporal.
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Mas, sem prescindir de um final feliz, entre tantos caminhos que se bifurcam entre o Bem e o Mal, a Vida e a Morte, o nosso germânico e bárbaro "herói" encontra redenção no AMOR...de uma bela Siciliana. Um lugar-comum neste filme em palco Italiano? Talvez não...afinal foi em Palermo na corte de Federico II, Imperador do Sacro Império Romano-Germânico, como tal Rei da Sicília...e também por acréscimo da Germânia, que foi cantada a primeira poesia de Amor composta em Língua Italiana !
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