segunda-feira, maio 25

Manual de Simpatia


Voltemos, então, às metáforas bélicas. Nesta primeira grande-guerra do Covid, a primeira vítima, passe a repetição, foi o Turismo. Qual soldado raso de infantaria, o Turismo foi o primeiro na linha de fogo. Companhias aéreas, agências de viagens, hotéis, alojamentos, animação, restaurantes, tuk-tukes, e tantas outras actividades conexas, foram os primeiros a ser lançados na trincheira do confinamento e a sofrer o ataque, inclemente, dos obuses do distanciamento social. Neste admiravelmente asséptico “novo normal”, a Indústria da Hospitalidade é, ela própria, uma impossibilidade, um anacronismo, para o qual olharemos com saudade ou estranheza. Num tempo que nos obriga a andar de cara tapada, uma actividade cuja mercadoria é o sorriso, cuja moeda de troca é a cortesia, não tem, digamos assim, viabilidade económica.

Mas, seria injusto apontar culpas directas a um determinado governo pelo súbito colapso desta Indústria. Não foi só um ou outro Estado, ou região, que se fechou sobre si próprio. Foram todos os países ocidentais que, de um dia para o outro, suspenderam aquilo que era o oxigénio do turismo mundial – a livre circulação de pessoas. Porém, há, obviamente, diferenças, nuances, de país para país, de região para região, quer no grau de preocupação, como na rapidez do auxílio ou, até, na atitude geral para com a necessidade, para não dizer a vontade, de reinventar o sector.

O caso dos Açores é particularmente paradigmático de como o autismo do governo cavou, ainda mais fundo, a sepultura do Turismo. Fechados na sua bolha de preocupação clínica, obcecados pela demanda de cobrir as ilhas num imenso manto de descontaminação, Presidente do Governo e Autoridade de Saúde, tudo fizeram para fechar, isolar e desinfectar os Açores do perigo estrangeiro. Encerramento de aeroportos, cancelamento de voos, quarentenas obrigatórias, quarentenas “voluntárias”, e até, cúmulo dos cúmulos, apelos abertos e sem vergonha a que “as pessoas não se desloquem à região”! Como se já não fosse bastante, para a eutanásia do sector, a inadequação, insuficiência e, até mesmo, a clara injustiça dos parcos apoios de Estado, que em muitos casos mais não eram do que certidões de óbito encapotadas, o último prego no caixão foi, de facto, a forma como, com cada palavra e cada gesto, os responsáveis políticos regionais, foram regando a semente xenófoba que medra, mais ou menos timidamente, dentro de cada açoriano.

No que concerne aos apoios, desde o seu início se percebeu que não passavam de um eufemismo, para não dizer um logro. Pensos rápidos para tratar uma gangrena. A tentativa, desesperada, de conter os despedimentos, com layoffs, e só até ao final do ano, não visa proteger trabalhadores ou apoiar empregadores, busca apenas garrotar as estatísticas do desemprego até depois das eleições. Para além de que esquece todos os outros imensos custos mensais que sobrecarregam as empresas, como, por exemplo, a conta da EDA que nos Açores chega a ser obscena. Ou os custos de manutenção. Nestas ilhas em que a humidade se mede em metros cúbicos e não em percentagem, bastam dois dias de porta encerrada para crescer cabelo nas paredes de uma casa. Experimentem abrir uma porta no Nordeste depois de três meses fechada, a humidade entra-vos pelas narinas como uma má anfetamina. Por outro lado, incentivar o crédito a empresas já de si endividadas ou, cereja em cima do bolo, limitar os apoios a um critério de ausência de dívidas ao Estado, são tudo provas de como a última das preocupações deste governo, desde o Palácio de Santana ao Alto das Covas, é ajudar o Sector do Turismo. E, nem vale sequer a pena falar do Edifício CTT, onde, em total alheamento da realidade em que estamos metidos, a Secretária da Energia, (que certamente não leu a entrevista do Jorge Rebelo de Almeida ao Negócios, anunciando o cancelamento do investimento do Grupo Vila Galé no antigo Hospital de Ponta Delgada...) andava, ainda na semana passada, pasme-se, a enviar emails ao Trade, perdoem o jargão, a pedir contributos para um manual de boas práticas, enquanto todo o resto do país, Madeira na frente, já se prepara para abrir, se é que já não abriu, ao Turismo.

No entanto, o mais grave disto tudo, como se tudo isto não fosse já suficientemente dramático, é, sem margem para dúvidas, esse sentimento generalizado que se disseminou pela população, sustentado pelo discurso e acção do governo, de repulsa, renuncia e pura antipatia para com os que são de fora, e que extravasa de cada comentário a favor do isolamento geográfico das ilhas, como se este fosse, em si mesmo, uma vantagem e não a fatalidade que realmente é. Numa região que até há pouco mais de 20 anos vivia enclausurada nos seus xailes negros, numa região que, mesmo entre si, gosta de alimentar o odiozinho de ilha para ilha, numa região onde até há tão pouco tempo o exemplo máximo de bom atendimento num restaurante era o “vás comê e vás gostá”(!), nesta região, a postura conjunta da tríade Autoridade de Saúde, políticos e (perdoa-lhe Senhor que ele não sabe o que diz) Cónego Borges, em toda esta birra das ligações com o continente, deu cabo, quem sabe se por muitos e bons anos, daquilo que é o bem mais precioso de um Destino, e não, não estou a falar das belezas naturais ou da sustentabilidadezinha, estou a referir-me à arte de bem receber, a pura, simples e genuína, afabilidade. Aquilo que é, afinal, o ouro de qualquer Destino – a simpatia.

A simpatia, a hospitalidade e o bem receber, não se recupera com carimbos sanitários, nem com luvas de plica e máscaras comunitárias, nem com vídeos pseudocómicos com a Teresa Guilherme, nem sequer com anúncios empacotados em aviões da Ryanair à saída de Ringway. Ninguém quer ir a onde não será bem-vindo. E, foi essa mensagem – não queremos cá ninguém! – que andaram, Vasco Cordeiro, Tiago Lopes, até José Manuel Bolieiro, a passar durante estes dois meses e meio, mais o próximo que aí vem até ao início de Julho. A minha falecida avó, costumava dizer que "era preciso uma vida para se construir um 'bom nome', mas que bastava um dia para o perder". Aos Açores bastou um vírus com nome de cerveja. Que Deus lhes perdoe, a mim falta-me a paz de espírito para perdoar…

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