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Não me recordo do primeiro disco que comprei nos meus já arqueológicos "anos verdes". Parece-me que foi há séculos mas a verdade é que foi apenas ontem e algures na alvorada dos anos 80. Vivíamos nessa época sob a tensão da dita "guerra-fria" e a revolução das "tecnologias da liberdade" era ainda embrionária. Em 1984, o premonitório ano da desgraça da distopia de George Orwell, a IBM introduziu no mercado o conceito de "pc", ou seja, de computador pessoal. O telescreen do Big Brother, ficcionado por Orwell em 1949, tem hoje equivalente real e democrático na globalização e na chamada sociedade da informação. O comunismo, como se sabe, acabou em 1989 com a queda do muro de Berlim mas, também como se sabe, não importou ainda o fim da História. Voltando à trajectória dos discos, sem divergir, o certo é que algures nos anos 80 lá comprei a custo o meu primeiro LP. Era o tempo da música a 33 e a 45 rotações, consoante a peça fosse um disco de longa duração ou um single. Na minha cidade existiam várias lojas da especialidade a que chamávamos “discotecas” e presumo que foi no "trevo" da "disrego" que terei comprado o meu primeiro vinil ! Até pode ter sido o álbum de estreia dos The Police cuja discografia fui adquirindo com fiel veneração. "O Trevo", na rua do Valverde em Ponta Delgada, era pouco mais do que um balcão acantonado de discos ordenados alfabeticamente e por género. A clientela era servida pelo Luís Cabral e pelo Carlos Pacheco com tanto profissionalismo e erudição que logo na primeira compra o cliente ocasional passava a integrar o lote da clientela fidelizada. Era também o tempo da cassete pirata e das "mixed tapes" que trocávamos em suporte de fita de 60 minutos, preferencialmente de cromo cuja durabilidade e resistência era superior. Mais tarde carreguei os meus vinis em cassetes que viajaram para Coimbra, fizeram quilómetros por estradas e caminhos, e gastaram-se num walkman que a minha Mãe embrulhara numa das ofertas de um Natal registado em película Kodak. Também as cassetes eram produto com muita saída comercial e nelas gravávamos o "som da frente", e o melhor das rádios, piratas e legais, sempre na esperança de que o dj de serviço não cortasse a música com jingles ou peroração inútil. Depois, tudo se acelerou num vórtice e veio o vídeo em VHS, o suporte digital em CD, e finalmente os computadores portáteis conectados sem fios à babilónia da internet. Pelo meio ainda me recordo de ter comprado o meu primeiro CD : "BossaNova" dos Pixies, banda que me contagiou nas ondas da RUC (Rádio Universidade de Coimbra) e nos circuitos alternativos da noite da "lusa Atenas". Foi já nos anos 90 com a democratização dos leitores de CD´s e demais parafernália associada. Em suaves prestações liquidei o meu primeiro leitor de CD´s, também comprado nas lojas "Trevo", e de uma marca que até à data não conhecia. O velho "Denon" está hoje emprateleirado pois descontinuou -(uma espécie de morte tecnológica)- e não lê qualquer CD que tenha sido gravado em suporte mp 3! Oportunamente lá estava o "Trevo" - e a assistência técnica do Luís Cabral e do Carlos Pacheco - e fiz o upgrade para outro leitor de CD´s capaz de reproduzir áudio a partir de qualquer formato digital. Hoje, os meus filhos e a sua geração ipod, já não querem sequer saber de CD´s. Quanto aos discos de vinil o seu revivalismo serve um "nicho" de mercado para dj´s saudosistas e profissionais. Hoje, a loja de discos da "Disrego", no Parque Atlântico, bem longe no tempo e no espaço do cantinho do "Trevo" no centro de Ponta Delgada, vai fechar as portas. Liquidação total e fim da festa para muitos que ainda são da geração do gira-discos e dos CD´s. Mas, perde-se muito mais do que isso, pois a caminho da digitalização impessoal e virtual deixa-se para trás a dimensão humana que o conceito de "loja" tinha antigamente, incluindo a confiança e amizade que tantas vezes se gerou para a vida naquilo a que hoje, quase museologicamente, chamamos "comércio tradicional". Mas, não há volta a dar, mudam-se os tempos e, inevitavelmente, mudam-se as vontades que também fazem a banda sonora das nossas vidas
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João Nuno Almeida e Sousa nas crónicasdigitais do jornaldiario.com
Não me recordo do primeiro disco que comprei nos meus já arqueológicos "anos verdes". Parece-me que foi há séculos mas a verdade é que foi apenas ontem e algures na alvorada dos anos 80. Vivíamos nessa época sob a tensão da dita "guerra-fria" e a revolução das "tecnologias da liberdade" era ainda embrionária. Em 1984, o premonitório ano da desgraça da distopia de George Orwell, a IBM introduziu no mercado o conceito de "pc", ou seja, de computador pessoal. O telescreen do Big Brother, ficcionado por Orwell em 1949, tem hoje equivalente real e democrático na globalização e na chamada sociedade da informação. O comunismo, como se sabe, acabou em 1989 com a queda do muro de Berlim mas, também como se sabe, não importou ainda o fim da História. Voltando à trajectória dos discos, sem divergir, o certo é que algures nos anos 80 lá comprei a custo o meu primeiro LP. Era o tempo da música a 33 e a 45 rotações, consoante a peça fosse um disco de longa duração ou um single. Na minha cidade existiam várias lojas da especialidade a que chamávamos “discotecas” e presumo que foi no "trevo" da "disrego" que terei comprado o meu primeiro vinil ! Até pode ter sido o álbum de estreia dos The Police cuja discografia fui adquirindo com fiel veneração. "O Trevo", na rua do Valverde em Ponta Delgada, era pouco mais do que um balcão acantonado de discos ordenados alfabeticamente e por género. A clientela era servida pelo Luís Cabral e pelo Carlos Pacheco com tanto profissionalismo e erudição que logo na primeira compra o cliente ocasional passava a integrar o lote da clientela fidelizada. Era também o tempo da cassete pirata e das "mixed tapes" que trocávamos em suporte de fita de 60 minutos, preferencialmente de cromo cuja durabilidade e resistência era superior. Mais tarde carreguei os meus vinis em cassetes que viajaram para Coimbra, fizeram quilómetros por estradas e caminhos, e gastaram-se num walkman que a minha Mãe embrulhara numa das ofertas de um Natal registado em película Kodak. Também as cassetes eram produto com muita saída comercial e nelas gravávamos o "som da frente", e o melhor das rádios, piratas e legais, sempre na esperança de que o dj de serviço não cortasse a música com jingles ou peroração inútil. Depois, tudo se acelerou num vórtice e veio o vídeo em VHS, o suporte digital em CD, e finalmente os computadores portáteis conectados sem fios à babilónia da internet. Pelo meio ainda me recordo de ter comprado o meu primeiro CD : "BossaNova" dos Pixies, banda que me contagiou nas ondas da RUC (Rádio Universidade de Coimbra) e nos circuitos alternativos da noite da "lusa Atenas". Foi já nos anos 90 com a democratização dos leitores de CD´s e demais parafernália associada. Em suaves prestações liquidei o meu primeiro leitor de CD´s, também comprado nas lojas "Trevo", e de uma marca que até à data não conhecia. O velho "Denon" está hoje emprateleirado pois descontinuou -(uma espécie de morte tecnológica)- e não lê qualquer CD que tenha sido gravado em suporte mp 3! Oportunamente lá estava o "Trevo" - e a assistência técnica do Luís Cabral e do Carlos Pacheco - e fiz o upgrade para outro leitor de CD´s capaz de reproduzir áudio a partir de qualquer formato digital. Hoje, os meus filhos e a sua geração ipod, já não querem sequer saber de CD´s. Quanto aos discos de vinil o seu revivalismo serve um "nicho" de mercado para dj´s saudosistas e profissionais. Hoje, a loja de discos da "Disrego", no Parque Atlântico, bem longe no tempo e no espaço do cantinho do "Trevo" no centro de Ponta Delgada, vai fechar as portas. Liquidação total e fim da festa para muitos que ainda são da geração do gira-discos e dos CD´s. Mas, perde-se muito mais do que isso, pois a caminho da digitalização impessoal e virtual deixa-se para trás a dimensão humana que o conceito de "loja" tinha antigamente, incluindo a confiança e amizade que tantas vezes se gerou para a vida naquilo a que hoje, quase museologicamente, chamamos "comércio tradicional". Mas, não há volta a dar, mudam-se os tempos e, inevitavelmente, mudam-se as vontades que também fazem a banda sonora das nossas vidas
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João Nuno Almeida e Sousa nas crónicasdigitais do jornaldiario.com
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