segunda-feira, novembro 7

GERAÇÃO DE 70 #2


Palácio Fronteira. S. Domingos de Benfica. Lisboa

Bom Senso e Bom Gosto

O Governo português devia fazer diligências junto da UNESCO para candidatar o bom senso e bom gosto a património imaterial da Humanidade. Disparate, dirão alguns, e o que é que o bom senso e bom gosto tem a ver com Portugal? O mesmo que o senso comum tem a ver com Inglaterra, respondo eu, pois por alguma razão o pronunciamos na língua usada por Thomas Paine para escrever Common Sense, o panfleto incendiário que está na base da Revolução Americana de 1776. Goste-se ou não, o common sense é um património anglo-saxónico. Basta dar uma vista de olhos pela Magna Carta inglesa ou pela Constituição norte-americana.

Bem, mas daí até considerar o bom senso e bom gosto património português, vai uma distância maior que a légua da Póvoa. Não há dúvida que vai mas, por outro lado, há uma estimável tradição nacional a sustentar a candidatura, pois foi sob a epígrafe Bom Senso e Bom Gosto que decorreu a grande querela entre Antigos e Modernos no Portugal oitocentista. A epístola dirigida por Antero de Quental a António Feliciano de Castilho, datada de Coimbra, 2 de Novembro 1865, é a carta de alforria da Geração de 70 e, por assim dizer, representa o manifesto da sua modernidade contra um Portugal piegas e burocrata. Mais de cem anos passados sobre sucessivas e caducas modernidades, que é feito hoje do bom senso e bom gosto? Pessoalmente, fui encontrá-lo num Sermão de D. Fernando Mascarenhas ao seu sobrinho António, feito, quem diria, já no século XXI. Fiquei contente com o achado e pelo facto de ter ocorrido em Portugal, porque para mim isto é bem melhor do que o murro do João Vieira Pinto ao árbitro no Mundial da Coreia, ou até do que o próprio futebol em si, mesmo nos seus melhores momentos.

Onde é que estão as bandeiras à janela, passado que está o Euro 2004? E tudo o vento levou? Tudo, estou em crer que não, apenas aquelas que estavam à janela. A minha não, obrigado, que a tenho sempre bem arrecadada dentro da boca. A minha pátria é a língua portuguesa, aquela que também - e tão bem - usamos para nos insultarmos a nós próprios. Eu, se fosse ao Ministro da Educação, distribuía em todas as escolas do 3º ciclo um DVD do Mário Viegas a recitar a Cena do Ódio do Almada Negreiros, que era amulatado e nasceu em S. Tomé e Príncipe. É por estas e por outras que gosto de ser português e luso-tropicalista, para variar um pouco do desconsolo europeu.

Chateia-me que o Pacto de Estabilidade seja uma espada de Damocles sobre a cabeça de todos nós e que as finanças públicas se tenham tornado o alfa e o ómega deste deserto de ideias à beira mar plantado. Eufemística e literalmente, Portugal está a viver uma seca e os vendedores de chuva já andam por aí nas suas danças. Qual deles terá a chave do problema? Se é que algum deles a tem. O Eliot, que cito de memória, dizia que thinking of a key / each one of us confirm a prison.

Se calhar devíamos era considerar o bom senso e bom gosto o verdadeiro desígnio nacional e assumir que, aí sim, o nosso deficit é tragicamente preocupante.

"António, diz-se muitas vezes que "no meio está a virtude", e diz-se bem. Só que esse meio não é o meio insípido do exacto lugar geométrico entre um e outro extremo, é um lugar intermédio entre o meio e cada um dos extremos, extremos que ao meio e entre si se opõem. Este meio insípido e os extremos acabam, contrariamente ao que parece, por fundir-se na sua invariabilidade. O meio de que falo é um lugar muito mais rico de alternativas e cambiantes, é um lugar de harmonias e de harmonias quantas vezes feitas das próprias dissonâncias.

Os excessos que se julgam o último "grito" e a grande novidade têm a ilusão de ser os verdadeiros representantes do seu próprio momento. Assim não é, porém, pois o verdadeiro "bom senso" e o verdadeiro "bom gosto" é que efectivamente vivem no seu tempo, porque não o negam tentando desesperadamente centrar-se, nem o negam tentando desesperadamente extremar-se; são verdadeiramente do seu tempo, porque não procuram nem viver nele nem viver fora dele, são do seu tempo porque têm a consciência das raízes do passado e a consciência da esperança no futuro."


Fernando Mascarenhas (Marquês de Fronteira), Sermão ao meu sucessor, Lisboa, D. Quixote, 2003, p. 67


Este post é dedicado a um fumador, que reputo de sensato e com bom gosto.

Sem comentários: