terça-feira, abril 24

O Livro do Nuno*



MELANCÓMICOAforismos de Pastelaria
Nuno Costa Santos

Livraria Solmar – 23 de Abril de 2007

"Até ao dia em que assassinou uma
Para apresentar um novo livro, só convidava pessoas que o tinham odiado."

Bom, é esta então a guilhotina que vai pairar sobre mim até ao fim desta apresentação. Ora, a este propósito, eu devo começar por dizer que o Nuno é meu amigo. Um muito querido amigo, de longa data, com quem tenho partilhado gostos e afinidades, descoberto poetas e ensaístas, com quem tenho aprendido pequenos segredos e grandes histórias, com quem bebo cafés e imperais, com quem converso e confesso e, ás vezes até, discuto viva e acaloradamente. É importante dizer isto logo de início em jeito de declaração de intenções. Porque como estou aqui para apresentar o novo livro do Nuno, não quero que fiquem com a suspeição de que os exacerbados elogios que eu vou fazer a seguir ao seu livro se devem apenas a uma cumplicidade entre amigos, ou à ameaça iminente de um assassinato ao fim da última palavra. Não, eu hoje tenho a dupla felicidade de poder despejar uma série de descomunais e arrebatados panegíricos a um grande livro escrito por um grande amigo porque o livro é mesmo brilhante e ele é mesmo meu amigo. Dupla e rara bênção.

MELANCÓMICO é o terceiro livro do Nuno enquanto escritor, sim porque ele acumula em si essas duas condições totalmente antagónicas de autor e editor, coisa rara e que diz muito da sua personalidade. Gostaria de poder assistir a uma conversa do Nuno escritor apresentando um livro ao Nuno editor. Depois de Dez Regressos, livro de contos, editado pela saudosa Salamandra, depois do livro de poesia Os Dias Não Estão Para Isso, editado pela sua Livramento e de O Inferno do Condomínio lançado pela Gradiva. Chegamos ao MELANCÓMICO.

O Melancómico começou por ser um blogue, ou melhor o Melancómico começou por ser O Quarto Andar sem Elevador, o Desejo Casar e outros blogues do Nuno. Aliás o Melancómico é o Nuno. Porque o Melancómico é mais do que um livro, ou um projecto literário, ou um personagem, ou mesmo mais do que um conceito. O Melancómico é toda uma nova maneira de ver a realidade e de entender a vida. O Melancómico é tão extraordinário que tal como todas as grandes obras de ficção contemporânea já passou de livro a filme e depois a série de televisão. O Melancómico deixou a sua existência em texto e fruto do trabalho conjunto do Nuno com dois jovens realizadores portugueses, que por serem daltónicos usam o nome Daltonic Brothers (que estranho...), o conceito evoluiu para uma série de curtas metragens, que neste momento estão a ser vendidas às televisões, sim porque os artistas também pagam a renda e outras contas diversas.

Como uma imagem vale mais do que mil palavras proponho que vejamos o 1º episódio da versão celulóide do Melancómico. Não só porque me poupa a mim trabalho de apresentação mas porque os filmes são muito bons, Parafraseando outra grande personalidade da cultura portuguesa contemporânea - Let's look at a trailer.

Filme 1 [link para o site das Produções Fictícias, procure o Melancómico e clik]

Eis pois o Melancómico. Um personagem solitário num bairro qualquer de uma cidade qualquer, uma frase ao calhas num livro ao acaso, uma identidade, uma dor indefinida, o preço de um café na pastelaria da esquina, a Dona Bina, os grandes problemas da existência, o Márcio, os filhos, o fórum TSF, Deus e o IRS, o Lidl…

Melancómico é a busca do autor pela sua voz, o seu registo. No Melancómico existe um autor em trânsito e leitores na paragem. O Melancómico é uma forma de olhar, do autor sobre si e de nós ao espelho. O Melancómico é a capacidade do Nuno de nos representar a nós todos falando de si e do outro. Todos temos uma Dona Bina dentro de nós, e um Márcio, todos nós somos potenciais frequentadores do Fórum TSF. Todos nós pedimos um café e ponderamos se já pagamos a conta. Nós todos somos o Melancómico. Estes pequenos textos, estas frases, que o Nuno classificou de aforismos e que o são mas ao mesmo tempo são ainda mais do que apenas máximas, sentenças, isso, estes minúsculos textos, estes micro-contos, estes romances-mínimos, são a descrição do tempo, deste nosso tempo. Fosse só por isto e este pequeno livro já seria grande.

O Melancómico observa tudo. O Melancómico descreve tudo.

Literatura
"Cena do Ócio. Se quisesse fazer um retrato do país, Almada teria escrito a Cena do Ócio."
"A vaidade da escrita. Sempre que ia escrever um romance, contratava uma maquilhadora."


Dinheiro
"Enriquecimento com causa. Tem vergonha de falar sobre isso. Ficou multimilionário à custa de uma canção sobre a pobreza."

Trabalho
"Uma vida de Trabalho. A única coisa que deixou como herança foi um livro de recibos verdes."

Portugal
"O prognóstico da Dona Bina. Portugal ainda vai ser a Chelas da Europa."

Filhos
"Isto é assim. Eu não deixo o meu filho mexer nas louças. O meu filho não me deixa ter opiniões políticas."
"Jeito. Começo a pensar que o meu filho é uma criança com imenso jeito para os adultos."
"Intensamente generoso. O meu filho é tão intensamente generoso que não se limita a dar coisas às pessoas. Ele atira coisas às pessoas."


Opinion-Makers
"Alberto Charrua, 61 anos, que nos liga de Coruche. Eu acho que só os ortopedistas podem pronunciar-se sobre temas fracturantes."

Intelectuais
"Recibos. Ele era tão intelectual, tão intelectual que até o seu livro de recibos verdes era editado pela Assírio e Alvim."

Política
"Conselho. Antes de fundar um partido, crie uma facção dos renovadores."
"Vocação: Político. A minha vida está cheia de promessas não cumpridas."


Relações
"Relação com excesso de velocidade. Ficou com o namorado apreendido durante três anos."
"Duas amigas. Num gesto de generosidade, ela quis emprestar o marido à amiga. Mas a amiga disse logo; "Obrigada, mas já tenho esse".


Deus
"Márcio interrompe o jantar para fazer uma pergunta. Em que categoria Deus está inscrito na Finanças?"
"Dona Bina não sabe a resposta mas não fica calada. Isso não sei. Só sei que isto está tão mau para todos que se Cristo resolvesse descer à Terra teria de ficar alojado no Íbis."


Sexo
"Da manipulação dos factos. Muito mais frequente do que a desonestidade intelectual é a desonestidade sexual."


Tudo isto organizado pela lógica do desordenamento (urbano) natural. Culpa da Deolinda, a empregada, que um dia chegou a casa e arrumou tudo, (pela cor das lombadas?)

Tudo isto é o Melancómico, micro-contos sobre vidas que podem ser como as nossas.

"La vida loca. Nunca saiu de casa dos pais. Nunca teve amigos. Nunca teve namorada. Nunca teve emprego. Nunca foi ao cinema. Nunca leu um livro. Nunca foi jantar fora. Nunca foi a uma discoteca. Mas, antes de morrer, a última frase que lhe ocorreu pronunciar foi Livin’ la vida loca."


Vejam...

Filme 2

"Em todas as obras de génio reconhecemos os nossos pensamentos rejeitados - Regressam a nós com uma certa majestade alienada."
Ralph Waldo Emerson (1803 – 1882)

Esta frase de Emerson aplica-se perfeitamente ao trabalho do Nuno. Poucos autores podem arreigar-se o direito de criar um conceito, de serem absolutamente originais ao ponto de inventar um termo. O Nuno fez exactamente isso. Ao fazê-lo deu um novo contributo à língua e à cultura. Moldou uma nova ideia para definir aquilo que somos, para definir aquilo que é a vida normal de todos os dias. Agora temos a expressão Melancómico para nos descrever. É óbvio que nisto existem referências, inspiradores. Óscar Wilde, Woody Allen, Larry David, Harvey Pekar, Charlot e Buster Keaton, entre muitos outros. Dentro do cânone português Eça e Pessoa imediatamente surgem na mente, o Eça crítico feroz e incansável da mediocridade portuguesa e o Pessoa - Bernardo Soares - do Livro do Desassossego. Ou então Cesário, O'Neill, Sttau Monteiro, Cardoso Pires e Mário Cesariny. Mas o que o trabalho do Nuno têm de mais original é esse distanciamento em relação à tradição portuguesa, é que embora Portugal seja um País com uma tradição humorística extensa e antiga o humor português é mais ligado à sátira do que à ironia e o Melancómico é pura ironia. Para existir ironia é necessário um profundo respeito pelo outro, pela sua liberdade individual. O ironista quando aponta um defeito, ou critica uma atitude, fá-lo com a esperança última de que haja uma modificação, fá-lo com a convicção de que é possível e desejável uma mudança, mas ao mesmo tempo com um respeito absoluto e uma convicção plena no direito à diferença. Também na forma o Melancómico é mais devedor da tradição anglo-saxónica, os pequenos textos do Nuno são verdadeiras punch-lines cómicas. O Melancómico é puro wit e esse é um substantivo que só a língua inglesa tem.

O Melancómico não é jocoso, não faz escárnio, o Melancómico é sarcástico e mordaz e ao mesmo tempo e mais do que tudo é poético e sublime. O Melancómico é, afinal, a possibilidade de nos rirmos do quotidiano ou de Deus com o mesmo prazer e alegria. O Melancómico é a capacidade de um sorriso se ver a si próprio ao espelho com melancolia.

Eu sou Melancómico: "Definição havaiana de poeta. O poeta é um surfista que tem medo das ondas."

Obrigado Nuno.



*Versão escrita da apresentação de ontem do Melancómico na Livraria Solmar

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