domingo, junho 26

A VIAGEM COMO APRENDIZAGEM



James Tissot (1836-1902)
London Visitors (circa 1874)
Toledo Museum of Art, Ohio, USA

Eu vou para baixo. Se o tempo for bom, daqui me dou por despedido; senão voltarei ao depois para cima. Adeus minha Prima, Adeus meus filhos, Adeus meus Irmãos. Adeus minha casa. Rogo a Vossemecês todos a boa harmonia na minha ausência, até que Deus queira.

Esta nota de adeus, escrita por José Caetano Dias do Canto e Medeiros a 2 de Dezembro de 1836, dá bem conta da forma contingente como eram feitas as viagens na 1ª metade do século XIX, quando a cidade de Ponta Delgada ainda não tinha um porto artificial onde os barcos acostassem em segurança. Os embarques podiam ser determinados por um golpe de vento e eram feitos ao sabor da mudança das marés. Não tinham, em suma, hora marcada e, por isso mesmo, não houve lenços brancos de despedida quando José Caetano desceu canada abaixo, da sua Quinta dos Prestes até aos calhaus de Rosto de Cão, para tomar o bote que o levaria até à Eugénia, o patacho português em que embarcou rumo a Lisboa, primeira etapa do seu grand tour europeu com duração de nove meses, o tempo de gestação de uma nova vida.

A prática do grand tour no seio da classe dominante açoriana vulgarizou-se a partir da década de 1830, quando assentou a espuma revolucionária das Guerras Liberais, e foi particularmente prolixa na ilha de São Miguel pois o comércio da laranja assegurava relações directas e frequentes entre Ponta Delgada e Inglaterra. Quaisquer que fossem os itinerários dessa viagem, ela tinha sempre como pontos de visita incontornáveis as cidades de Paris e Londres que, quais faróis da civilização moderna, eram o stupor mundi de então. Ao contrário da voga lançada pelos aristocratas ingleses na 2ª metade do século XVIII, cujos destinos preferenciais eram a majestade da paisagem alpina ou a sensualidade e patine histórica do litoral mediterrânico, o modelo seguido pelos viajantes micaelenses no século XIX escapa completamente ao padrão geográfico, e também estético e ideológico, do grand tour romântico. Aquilo que José Caetano (e como ele muitos outros) procurava ao viajar para as grandes cidades do Norte, não era o espectáculo da natureza ou o fascínio pelo passado, mas sim o mergulho decidido na contemporaneidade e a irreprimível vertigem do progresso. Não se julgue, contudo, que estas regras da atracção pela modernidade só começaram a fazer-se sentir no século XIX, pois já em 1796 um negociante de grosso trato estabelecido em Ponta Delgada, o americano Thomas Hickling, fez um grand tour europeu em tudo semelhante ao de José Caetano, sendo curioso comparar os diários de viagem que ambos escreveram nessas suas deambulações por Paris e Londres.

Ao lermos esta espécie de log books damo-nos conta de que os Açores, ou pelo menos algumas franjas das suas elites sociais, procuravam estar à la page com as transformações ocorridas nos principais centros da civilização, pelo que as viagens empreendidas, sendo muitas vezes de negócio (como foi o caso da de Hickling), tinham também um forte carácter de recreio e instrução. A venda de vinho e fruta nos mercados do Norte da Europa, os contactos com agentes comerciais e corretores, eram complementados por idas a exposições, museus, jardins botânicos, teatros, óperas, livrarias e last but not the least, por uma lista de compras de objectos de distinção social (pianos, caleches, relógios e mobiliário) que, uma vez de regresso a casa, davam ao proprietário a marca inconfundível do seu cosmopolitismo e ilustração. O grand tour deixara de ser um ritual aristocrata e a sua crescente vulgarização social, que está na origem do fenómeno oitocentista do turismo, tornara-se numa forma de aprendizagem que fazia parte do cursus honorum de qualquer pretenso cavalheiro.

Viajar era um tirocínio cultural e o diário de José Caetano é bem a prova disso mesmo. Tal como ele, outros conterrâneos seus, com os quais se cruza em Londres e Paris, procuravam escrutinar nessas grandes urbes uma realidade que Lisboa não estava à altura de lhes oferecer. Os barcos ingleses que vinham à ilha de São Miguel carregar laranja proporcionaram aos Açores a ligação directa com o centro do mundo e, embora poucas, algumas famílias souberam aproveitar esse atalho e iludir a suposta periferia insular em que viviam. Iludiram-na e de que maneira, escolhendo Paris como local de residência ou estudo e fazendo muitas vezes os seus grand tours ao ritmo quadrienal das Exposições Universais que, a partir da primeira realizada em Londres no ano de 1851 (quando o recém inaugurado Crystal Palace mostrou ao mundo os prodígios da arquitectura do ferro), passaram então a marcar o início daquilo que Mr. Thomas Cook descobriu ser o turismo de massas.

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Este texto está também publicado na número estival da revista de bordo da SATA-Internacional, Azorean Spirit de seu nome. Na edição impressa a sopinha de letras vem ilustrada com uns bonecos engraçados que o meu trogloditismo informático impede de partilhar aqui com os amáveis leitores. A toda a blogosfera, as minhas acrisoladas desculpas.

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