quinta-feira, julho 17

Emigrações

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O retrato da nossa emigração é o reflexo possível do sonho Açoriano. Num recente artigo de Nuno Costa Santos, publicado na revista Paralelo da FLAD, recordamos a sorte da "serena resignação de quem viajou por necessidade" em evasão de séculos de "biografias de pobreza". No mesmo artigo fica o registo de todo esse património de Açorianidade que legamos ao novo mundo: "a importância da família, a figura paterna como marca de autoridade e a manutenção de laços com a família alargada". Foi uma gesta silenciosamente heróica desde a Costa Atlântica até às lonjuras do Havai onde, ainda hoje, a presença Portuguesa é real e de ascendência Açoriana. A emigração é ainda hoje uma porta de evasão em tempos de crise. Porém, felizmente, também a emigração já não é o que era. Nesse sentido sugere-se a deliciosa leitura da autobiografia de Charles Peters, inclusa na monografia "Um português na corrida ao ouro", da autoria de Francisco Cota Fagundes, com a chancela da Ed. Garajau. O "ouro" que então se buscava iniciou-se com os baleeiros da Nova Inglaterra que faziam o engajamento das suas tripulações nestas ilhas. Foi assim que começou, aos 10 anos de idade, em 1825, a aventura da emigração de Carlo Pedro Deogo Laudier de Andriado : o nosso Charles Peters. A partir daqui percorremos a aventura da sua biografia de emigrante que culmina na Califórnia em busca do pote dourado do arco-íris da "febre do ouro". Trata-se de um relato folclórico de cerca de um século de existência mas prenhe de lições de vida. É ainda o retrato de um tempo de profundas misérias na Pátria e dessas dá nota Charles Peters quando sublinha que: "no meu tempo as crianças estavam divididas em duas classes: as que andavam de sapatos e as que andavam descalças!". Esse é o retrato de um passado que importa esquecer. Mas também há um património que é um acervo que deve ser sempre revisitado. Além da Açorianidade já resumida, há nesta picaresca autobiografia uma voz que nos fala de um passado em que o legado às gerações vindouras era feito de valores. Essa voz é também a de Charles Peters nas suas famous last words da sua recriada autobiografia. Tentando ganhar a vida honestamente este Açoriano, emigrado na Califórnia, no final da sua vida recorda o seu legado: "antes de eu partir, minha mãe inculcou-me os preceitos de pagar as minhas dívidas, dizer a verdade, evitar a coscuvilhice, não abusar do álcool e do tabaco, cumprir a minha palavra e ser caridoso com o meu próximo e os animais, não me avisou de que não me metesse em litígios – que têm sido a desgraça da minha vida(…) Nunca me meti num processo sem acreditar que a justiça estava do meu lado, nem perdi nenhum caso de tribunal sem pensar que o devia ter ganho, e que vão para o diabo os que me não derem razão". Tinha seguramente razão e apesar de rudimentarmente letrado há na sua voz uma sabedoria que os nossos emigrantes espalharam mundo fora. Pena é que esse evangelho não seja praticado na sua própria terra. Mas esse é o anverso da nossa emigração.
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João Nuno Almeida e Sousa nas crónicasdigitais do jornaldiário.com

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