terça-feira, novembro 1

...Ironic

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Estava suspenso sobre a falésia, abrigado numa ruína de vigia da baleia, olhava de frente o crepúsculo solar e no refulgir iridescente do mesmo reflectia como a "comunicação" entre as pessoas era por vezes tão difícil. Ironicamente, com a Natureza essa linguagem era feita em silêncio para o qual se inventavam palavras. O Sol a todos falava numa linguagem universal de incandescência: desde o halo na fronte dos santos à auréola enrubescida de um seio pelas brasas do desejo. Saudava sempre que podia o Sol, logo pelo raiar do dia, ambicionando viver como se não houvesse amanhã, e sempre que venerava o esplendor daquela luminosidade celestial lembrava-se que, era sob o Sol, que ela poderia estar a formular uma prece por ele. Numa réstia de luminosidade, que se afogava no mar, recordava que o Sol era ainda a deificação do fogo da paixão, da chama inesquecível do amor - (aliás unforgettable fire para usar o titulo de uma única canção que gostava de uma banda irlandesa que deplorava) -, do calor da amizade e, para os crentes, do ardor das epifanias.
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Era assim também que as miúdas, e as graúdas, da aula de bodybalance eram endoutrinadas na asana iogui da Saudação ao Sol e no qual meditavam, no final de cada aula, endrominadas pelo fedor mesclado do suor com o incenso de patchouly. Ele ia ao ginásio todos os dias e era exclusivamente, em dias alternados, um corredor ou um levantador de pesos. Mas nem nas mais violentas e extenuantes malhas tivera sequer uma excrescência da mítica "runners natural high" por descarga de endorfinas. Com esse cinismo descrente irritava também a instrutora de bodybalance que era, por sinal, também monitora de aeróbica, de um fanatismo jesuítico pelo fervor da sua "religião" "new age" e, como era moda, pela sua bicicleta na qual ia para todo o lado, "porque sim", e porque era "amiguinha do ambiente". Obviamente, quando se cruzava com ela de mota provocava-a ostensivamente com o escape de rendimento da sua Kawa GPZ, que tanto amava, e fazia burn-out sempre que podia.
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Definitivamente preferia o fato de cabedal completo ao look hippie chique que a jovem personal trainer de bodybalance usava. Sentia que ela o humilhava sibilinamente quando comentava que ele "para a idade que tinha estava em boa forma-física" ! Enfim, a "psicologia" feminina seria sempre um jogo e um mistério para ele. Completava-se mais um dia e agora anoitecia mais cedo. Aproveitava o que restava do Sunset e cismava a olhar para o mar. Pela similitude homófona da palavra ocorreu-lhe que, no "caderno de leituras" de copista, tinha várias citações de Somerset. O Maugham, que não era mau "novelista", vivera também numa ilha, vasta como a Inglaterra, da qual se exilara para a devassidão francófona pois na "Old England" viver, pública e abertamente, a sua "diferente" orientação sexual era uma provação que não queria para si. Irónico como se mudam os tempos, as latitudes, e as personagens e os "preconceitos" permanecem imutáveis ? As ilhas são sempre imensos pântanos. Nada que o atormentasse pois era um conservador e um liberal. Encontrou a citação do Somerset Maugham e como se tivesse um missal nas mãos leu-a com o Oceano no horizonte : "Veja-se o Mar : uma onda segue outra onda, não é a mesma onda e, no entanto, uma é causa da outra e transmite-lhe a sua forma e movimento. Da mesma forma os seres que viajam através do Mundo não são os mesmos hoje e amanhã, nem são numa vida a mesma coisa que são noutra ; e no entanto, é o incitamento e a forma de vidas anteriores que determinam o carácter daquelas que se seguem.". Premonitória a razão de quem escrevera o clássico "Of Human Bondage". Não ! Ele não gostava de bondage e estava nos antípodas dos apetites gay do Somerset Maugham, mas tinha em comum o fetiche pelas "Letras". Sim ! Tinha razão o "determinismo" era o efeito do incitamento e da forma de vidas anteriores. Tanto assim era que herdara a Kawasaki GPZ Ninja 900 da Classe de 80 e um CD do Lou Reed com aquele apelo a "New Sensations".
Amanhã era dia de finados, honraria aquele legado, e far-se-ia sozinho à estrada em romaria à campa daquele que lhe lembrava sempre, nas palavras de Tolstói, antes do tempo "um cardo esmagado no meio da lavra". Levaria flores. As que pudesse apanhar da variedade possível pois "nesta temporada há toda uma série de flores maravilhosas: os milefólios vermelhos, brancos, rosados, aromáticos, vaporosos; as margaridas descaradas; os malmequeres brancos de leite com o coração amarelo-vivo e um cheiro condimentado, pútrido; o agrião-da-terra amarelo com o seu odor meloso; as campânulas altas, de cor branca e lilás, com a flor em forma de tulipa; as ervilhacas rastejantes; as escabiosas amarelas, vermelhas, rosadas, liláceas, todas apuradas; as centáureas exibindo-se ao sol, em azul vivo na juventude e em azul claro e avermelhado na velhice; e as ternas flores do linho-de-cuco, cheirando a amêndoa e céleres no murchar." Com a sua sorte, por certo, alternaria entre cravos e rosas.
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Uma coisa tinha por certo : sabia que o mundo não girava à sua volta mas, talvez, na próxima curva podia ser que, em vez do desencontro, houvesse lugar para um rendez-vous, pelo menos com ele próprio.
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CONTINUA

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