quarta-feira, abril 2

Cidadão electrónico


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"o estudante fica para sempre penetrado desta grande ideia social: Que há duas classes – uma que sabe, outra que produz. A primeira, naturalmente, sendo o cérebro, governa; a segunda, sendo a mão, opera, e veste, calça, nutre e paga a primeira. Dois Mundos que se não podem confundir e que, vivendo à parte, com fins diferentes, caminham paralelamente na civilização, um com o título egrégio de Bacharel, outro com o nome emblemático de futrica. "Bacharéis" são os políticos, os oradores, os poetas e, por adopção tácita, os capitalistas, os banqueiros, os altos negociadores. "Futricas" são os carpinteiros, os trolhas, os cigarreiros, os alfaiates..." . Este minimalista retrato social de Portugal, feito pela pena de Eça de Queiroz, é tão actual como o seu "Conde de Abranhos" em cuja "fogueira" ardem os costumes da vida pública e as personagens-tipo da vida política. Certamente que este ataúde à beira mar, a que chamamos Portugal, já não é o que era no tempo de Eça. Com efeito muito mudou, por exemplo, a iluminação já não é a gás mas sim eléctrica! Na verdade, as mudanças são mais tecnológicas do que de atitudes e comportamentos. Porém, nalguns casos não houve evolução mas sim regressão. Hoje, quem nos desgoverna fá-lo muito melhor do que os "Bacharéis" queirosianos. Ademais, quem governa Portugal supõe, por ficção, um País na vanguarda do Séc. XXI quando, muitas vezes, a realidade se encarrega de demonstrar que a Pátria ainda tem sinais do Séc. XIX. Mesmo no domínio da tecnologia não poderá o governo ficcionar que a mesma aí está para tudo e todos. Contudo, continua a imaginar-se um País de topo, capaz de irmanar com os parâmetros que a OCDE descobriu na Noruega, da qual, infelizmente, apenas importamos o bacalhau e não o modelo de desenvolvimento. Sintomático desse País das maravilhas que não existe é a sanha de implementação de um e-governo. Mas aí está a digitalização da vida pública e administrativa dos Portugueses, que não é sempre compatível com o país real. Sem olhar para o Portugal que fica fora do cerco do Terreiro do Paço, a República prossegue com fúria o desgoverno do SIMPLEX, a desmaterialização dos processos, os concursos públicos para a contratação de bens e serviços com leilões electrónicos, a entrega de requerimentos em suporte com assinatura digital, tudo isto, e muito mais, em nome da sacrossanta tecnologia, como se cada um de nós fosse um webmaster a caminho de sermos cidadãos electrónicos. A bem de quem governa como é óbvio.
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João Nuno Almeida e Sousa nas crónicas digitais do JornalDiario.com


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