quarta-feira, agosto 16

Língua Afiada

Há determinadas coisas que não devem ser discutidas em público. Mas neste tempo em que tudo é mediático, em que tudo é revelador e passível de ser revelado, o que são os blogues se não uma enorme montra individual para o mundo..., neste tempo nada resiste à voracidade da opinião pública, por maioria de razão algo como um programa de televisão está isento de privacidade e é matéria de natural escrutínio público. O Língua Afiada não é excepção e na exacta medida da dimensão regional têm sido um caso sério de critica e comentário. Eu por mim preferia deixar-me recatadamente deste lado, o do interveniente directo e não me imiscuir na discussão, porque, tal como disse no início, determinadas coisas devem ficar dentro de portas. Estive em silêncio durante muito tempo, embora acompanhando de perto as discussões como esta no Foguetabraze. Agora acho que chegou a hora de dar a minha opinião, mas aviso de início que não vou revelar tudo e que concordo com muito do que o Nuno aí escreveu.

Algumas histórias, para serem bem contadas, precisam de um bom começo, mais do que um fim. A história do Língua Afiada começa no Choque de Gerações. Já praticamente tudo foi dito sobre o Choque de Gerações, mas para os mais esquecidos ou para aqueles que só agora chegaram aqui podem aceder aos arquivos deste blogue entre Outubro de 2004 e Junho de 2005 e ler o que por aí se disse. A história do Choque de Gerações é importante para se perceber o antes, o durante e o depois do Língua Afiada. O Choque de Gerações foi a primeira oportunidade que uma determinada geração de gente dos Açores, que está entre os trinta e os quarenta anos, teve de aparecer na RTP-A com a possibilidade de opinar e discutir uma vasta abrangência de temas fora do estrito âmbito de uma entrevista biográfica ou temas da sua especialidade a que antes estavam confinados. Essa foi uma das principais qualidades do programa. Perto do final do Choque de Gerações começamos a falar no que viria a seguir e na importância de não perder esses cunho geracional. O Joel Neto optou, legitimamente, por acabar com o Choque e partir para um outro programa fora do formato de debate. Em conversa com o Nuno Barata e com o Miguel Monjardino, e tendo a garantia do interesse por parte da direcção da RTP-A em manter uma colaboração connosco, decidimos apresentar uma proposta para um programa semanal em directo de debate sobre questões regionais, nacionais e internacionais. Por diversas razões essa proposta acabou por ficar na gaveta e em Setembro de 2005 a RTP-A abordou ao Nuno e a mim com a proposta do que viria a ser o modelo inicial do Língua Afiada.

Um programa de má-língua, feito em directo, semanalmente, apresentado por um jornalista, o Vasco Pernes, com três comentadores residentes, o terceiro seria o Nuno Mendes, e um painel de uma dúzia de personalidades que iriam rodando todas as semanas no papel de quarto comentador. O foco principal eram os temas regionais, maioritariamente políticos, mas de tempos a tempos outros assuntos, mesmo exteriores à região, iriam ser e foram comentados. Por parte da RTP-A foi posto um enfoque muito especial no estilo combativo e descomplexado de um verdadeiro programa de má-língua em que se discutiam sem pruridos os temas mais importantes da semana. O Vasco teve a ideia da Bica Escaldada, um momento no final do programa para cada um de nós lançar um pensamento, sugerir um livro, ou pura e simplesmente acabar de comentar um tema que tinha sido abordado ao longo do programa. Estava também definido desde o início a duração do programa, 45 a 50 minutos e que este não teria intervalo.

Pela minha parte posso confessar, com sinceridade, que quando este modelo me foi proposto hesitei em aceitar e não foi pelo parco retorno financeiro que era proposto, mas por considerar que um programa de má-língua não era para mim, sou por natureza, e quem me conhece sabe, uma pessoa diplomática e conciliadora. Por isso o tom peremptório e acertivo de um programa do género não me parecia o mais indicado para o meu tom. Mas a vontade de fazer televisão e de dar opinião foi mais forte. Aqui vale a pena fazer um parêntesis para dizer o seguinte: ao contrário do que as pessoas podem pensar a vontade de fazer televisão tem menos a ver com o anseio de fama ou de reconhecimento, mas mais com a própria adrenalina do meio e a possibilidade de participação na vida pública. O ambiente de um estúdio é extremamente solitário e fechado, para além dos técnicos que nos rodeiam nunca sabemos o que o espectador pensa se não quando chegamos cá fora ou quando no dia seguinte somos abordados na rua. A suposta fama associada à exposição pública traz poucos benefícios práticos. Não há nada de muito positivo ou estimulante em ser reconhecido na rua, mas a noção de que as pessoas vêem e ouvem algumas das coisas que vamos dizendo é importante e é um dos aspectos mais agradáveis do fazer televisão. Sim, porque também ao contrário do que é voz comum, há muito mais gente a ver a RTP-A do que se diz por aí.

Ao fim destes dois anos de aparecer na televisão apenas conto como positivos os frequentes contactos na rua com pessoas que não me conheciam mas que vinham dar a sua opinião, o seu incentivo, ou muitas vezes apenas para encomendar, entre aspas, um tema, muitas pessoas sentiram que ali poderiam fazer ouvir os seus problemas e as suas preocupações, houve até quem sugerisse que o programa devia ser aberto a telefonemas. Essa foi a parte boa, o resto foi levar porrada. Porrada anónima nos blogues e indirectas dos políticos que chegam sempre por vias travessas do género alguém disse que fulano diz que vocês, nós, são uns idiotas, incultos, mal preparados e convencidos. Dessa parte consegui criar uma carapaça suficientemente forte para não me preocupar. Sempre que as criticas foram construtivas dei-lhes o máximo de atenção, do mais tenho a consciência tranquila que fiz o que me pediram e pagaram para fazer dando sempre o meu melhor, mesmo quando não me apetecia. Quando digo isto acho que o posso dizer também pelos restantes participantes no programa.

Ao longo de mais de trinta emissões todos os intervenientes, salvo uma ou duas excepções que confirmam a regra, participaram no Língua Afiada de forma isenta, descomprometida, fiéis aos seus ideais e tentando sempre dar o seu melhor para que este fosse um bom programa de informação, mas também de entretenimento. 45 minutos de televisão é muito pouco, dividindo por quatro dá 10 minutos a cada um o que é quase nada, 10 minutos para comentar três a quatro temas é insignificante, suficiente apenas para dois ou três sound-bytes mais ou menos marcantes. Isso foi feito e bem feito. A prova de que o Língua Afiada foi bem feito foi a reacção dos políticos. Falamos de temas de que ninguém falava abertamente, fomos até violentos muitas vezes, mas era isso que se pretendia. Abanamos o sistema. Nos Açores as pessoas dão opinião no café, em casa dos amigos e pouco mais. A grande maioria da opinião publicada é movida por interesses que não são claros, por motivações políticas, económicas, pessoais. O facto de não haver nos Açores um único cronista pago é revelador da falta de isenção, mesmo de qualidade, da opinião que aqui é feita. Não digo que um cronista ser pago seja a principal maneira de aferir da sua qualidade mas é um elemento essencial para garantir a sua independência em relação aos poderes instituídos. Ao contrário do que muita gente pode pensar fazer o Língua Afiada não trouxe qualquer tipo de benefício político ou de qualquer outra espécie aos que nele participaram, antes pelo contrário e é assim que deve ser.

Perante a nossa frontalidade e honestidade fomos atacados com uma suposta falta de preparação da nossa parte. Não vou falar outra vez da questão dos tempos televisivos, mas não posso deixar de finalmente refutar em absoluto essa acusação. É óbvio que não se pode ser especialista em todos os temas, em todos os assuntos, mas aquele também não é um programa de especialistas. O que se pretendia era uma conversa acessível e descomplexada. Mas a verdade é que nunca na vida, e eu sou um viciado em jornais e revistas e blogues e internet, nunca na vida tive que ler tantos quilos de papel de jornal, ver tantos telejornais e debates, ler manifestos partidários e até, coisa impensável para mim até então, relatórios do tribunal de contas. Até para se dizer disparates é preciso saber. O único insulto que nos fizeram e que eu acho legítimo foram os de ordem pessoal. Quem não gosta de mim não gosta, pronto. O mesmo para os Nunos e para o Lucas e para todas as outras pessoas que por lá passaram e se há coisa que eu aprendi é que as pessoas são muito emotivas na hora de fazer um juízo, na hora de gostar ou não gostar.

O programa depois teve uma evolução atribulada, com saídas e entradas, com mudanças de figurino, mudanças essas que em muito contribuíram para a sua flutuação em termos de qualidade, por tudo fomos passando sempre com espírito de abnegação e vontade de andar para frente. Para mim foi mais fácil que nunca saí da minha posição inicial, ao Nuno Barata faço-lhe um enorme elogio pela forma sempre profissional como foi aceitando e praticando diferentes trabalhos no Língua Afiada. Umas semanas fomos melhores, outras piores, como é inevitável num programa deste género, mas fomos sempre verdadeiros, honestos, nunca levianos, tudo o que fomos dizendo foi com a certeza das nossas convicções e acabamos bem com as nossas consciências. O que para mim, sinceramente, é o mais importante.

Terminada esta primeira época do Língua Afiada ficam-me muitos motivos de satisfação e alguns, poucos felizmente, amargos de boca. Ficam também algumas das críticas a que fomos sujeitos e aqui tenho que me referir, finalmente, ao texto do Emanuel Carreiro, independentemente da opinião pessoal que este possa ter de cada um de nós, como referiu o Nuno e bem, o mínimo que se exige a um profissional de televisão com a sua tarimba e conhecimento e que ainda por cima no mesmo texto faz uma análise tão correcta e completa dos aspectos organizativos e de gestão da RTP-A era que quando se refere à programação fizesse, no mínimo repito, uma análise crítica dos programas, utilizando para isso a sua própria experiência pessoal. Dizer que um programa falhou, decididamente, é manifestamente pouco e vindo de quem vêm é quase insultuoso. A nós acusavam-nos de leviandade e falta de preparação, de sermos ligeiros na forma como tratávamos dos temas, pelos vistos fizemos escola.

O balanço público que posso fazer do Língua Afiada é este, o resto terá que ser tratado, a seu tempo, dentro de portas.

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