segunda-feira, setembro 20

RETALHOS DA MEMÓRIA

«Retalhos da Memória»

«Não me sinto suficientemente mau, para guardar rancor a quem quer que seja. É que o decurso dos anos vai delindo as rugosidade dos trilhos do passado, que se vai aplanando na razão directa do espaço de tempo decorrido. A saudade, neste caso, actua como agente corrector de assimetrias entre os factos e as pessoas, nivelando tudo nas impressões que restam, como resíduos na memória, todas com o mesmo sabor de recordações agradáveis.

No meu tempo, não havia nem creches, nem Jardins de Infância. Era uma espécie de pré história dos pequeninos jovens, sem pedagogia que os regesse.

Nesse período não escolar, havia os que, mais bafejados pela sorte, beneficiavam dum controlo mais cuidadoso dos familiares. Eu fui desses eleitos e recebi as primeiras letras de uma Avó velhinha, professora aposentada. Esta ministrava tais rudimentos entre as complicadas construções dos stores de ráfia, repuxando, com as linhas enfiadas em grossa agulhas, os nós entrelaçados dos desenhos copiados dum modelo, até inserir, nos quadrados já feitos, os contornos de uma figura humana, adaptados aos condicionalismos do material usado. A personagem, que representava um vendilhão ambulante, carregava ao ombro um pau com cesto em cada extremidade, aparecendo estilizada em formas geométricas, que a assemelhavam, no esquematismo das linhas sem relevo, a certas pinturas rupestres dos períodos mais recuados da civilização.

Mas voltemos à história, enquanto o famigerado store, que eu depois conheci já completo e colocado por detrás da vidraça, onde ela instalava o seu «atelier», se vai prolongando e compondo. Este era medido, a espaços, pelos palmos marcados de uma mão branca e fina, enrugada e salpicada de manchas castanhas de vários tamanhos, marcas visíveis de uma idade que ultrapassava em muito a casa dos setenta. Nesta dupla tarefa, se iam juntando as letras em palavras completas, cujas sílabas se alternavam por pequenas gradações de cor, entre o preto e o cinzento, segundo o método seguido na Cartilha Maternal , de João de Deus.

Porém, a preceder essa fase, tempo houve em que as ocupações dos membros do meu agregado familiar não permitiam esta oportunidade, até porque minha Avó ainda não residia connosco.

Foi então que teve lugar a tal fase da minha iniciação pré-escolar, em que, por recomendação expressa e, digamos, por empenhoca paterna, fui posto a vegetar, sem rei nem roque, numa escola oficial frequentada por alunos mais adiantados e de várias classes. Eu, como não estava inscrito em nenhuma, porque não ultrapassava os 5 anos de idade, arrastava a existência de um tolerado, impondo à professora o sacrifício de me suportar ? talvez ilegalmente ? dando tratos à imaginação sobre a forma de me entreter. Verdade se diga que o seu visual não era dos mais atraentes para aqueles que, como eu, atravessavam a idade dos mimos e das festinhas como guloseimas para adoçar a boca. Com aquele seu queixo a evidenciar um prognatismo acentuado e falando sempre com os dentes cerrados, tal como um mastim que, rosnando, prepara uma investida, nunca me premiou com um sorriso e nunca me contou uma história. Para cantar, talvez não tivesse timbre que se aproveitasse. Aquele vozear de trovão não deixava entrever de modo algum o entoar de uma melodia que nos acariciasse a alma. A sua cólera, quando a gritaria dos rapazes lhe fazia perder a paciência, chegava mesmo ao rubro, com duas rosas arroxeadas nas faces, que faziam suspeitar uma apoplexia iminente.

Por mim, estava na idade sexualmente neutral. Uma colega mais velha, a sério ou por troça, quis fazer-me uma festa e prometeu-me que me daria um beijo, se lhe juntasse uns papéis que deixara espalhados pelo chão, perto do seu lugar. Tremi de indignação ante o atrevimento e o impudor, e apresentei queixa formal à professora. Este papel que assumi de guardião da moralidade resultou num castigo, que sofri durante cerca de meia hora,de joelhos sobre um sobrado de pinho enrugado, numa postura sem prece e sem Deus a quem suplicar uma libertação da afronta.

A tal colega sorria, ou melhor, ria-se, em ares de consumação de uma vingançazinha pérfida e de vez em quando punha-me a língua de fora. Era demais para a minha sensibilidade ferida! Ah! Se a oferta inicial do beijo fosse feita dez anos depois! Lamento tanto a minha falta de cavalheirismo para com uma dama que, porque eu ainda não havia lido a versão emendada do Amadis, me fazia tão doce presente! Ah! Que se eu soubesse naquela altura o que sei hoje...Mas isso não! Não pode ser! Seria uma aberração da natureza transformar um anjo de ingenuidade num demónio de experiência amassada pelas perversões dos nossos semelhantes e , depois, pelas nossas também.

Mas o retrato e o perfil psíquico da professora ficaram-me na memória, como indício de uma escolaridade pouco auspiciosa. Por isso bendigo a presença da minha Avó, que me ajudou a desfazer essa premonição. Revejo ainda essa figura hierática que compunha uma globalidade talvez escultórica, constituída por ela, no seu duplo afã de me ensinar a ler e de continuar o seu store de ráfia, sentada naquela mesma poltrona de vimes estilo rústico, pintada de verde, tendo sobre o regaço a tal Cartilha e, ao lado, a minha figura postada com um joelho em terra (mas não de castigo), a fazer exercício de equilíbrio, para me manter na posição correcta de discípulo. »

José de Almeida Pavão

Furnas / Agosto / 1992

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