segunda-feira, junho 1

Uma educação musical

Para o ZB


A minha primeira influência musical foi o meu pai. O meu pai gostava, emocionalmente, de música. Era um romântico, que gostava de música romântica. O meu pai cantava, cantava o Fado e, diz quem o ouviu cantar, que em jovem cantava bem. Eu não me lembro de o ouvir cantar, mas, registo o macabro sarcasmo do destino de que o primeiro órgão do corpo que o cancro lhe levou foi uma corda vocal. O meu pai não era melómano, lá por casa não havia discos, lembro-me de umas esparsas cassetes com coisas aleatórias: Maria Creuza cantando Vinícius; Art Tatum e Errol Garner; Julio Iglesias. Mas, o meu pai gostava de música. Disfrutava dela. Jazz, MPB, Flamenco ou “espanholadas” como sorridentemente dizia e que ouvia sempre batendo palmas a ritmo com pose de cantor cigano. Fado, muito fado. Amália, Marceneiro, Carlos do Carmo, Rodrigo, de quem se dizia que era vagamente piroso, mas que cantava pela vida e o grande, enorme, António dos Santos e o seu “minha alma de amor sedenta” que ainda hoje ouço com arrepio. Mais tarde, houve uma altura em que trocávamos cds um com o outro, numa espécie de diálogo sem palavras, como se aquela fosse a nossa maneira de trocar afectos. No fugaz período da pré-adolescência a música que eu ouvia era a da minha irmã e a das amigas e amigos da minha irmã. As cassetes com os sucessos do Bananas e do Plateau. O “come on, Eileen” dos Dexys Midnight Runers ou o “I want you to want me”, dos Cheap Trick. Por essa altura havia, também, a música dos filmes: a guitarra do Ry Cooder no Paris, Texas, o “electric dreams” do Phil Oackley e do Giorgio Moroder, a banda sonora do Blade Runner do Vangelis. Ali pelos 11/12 anos a minha influência musical era o Rodrigo Carmona e a sua predilecção por tudo o que fosse rock de lycra e cabelo comprido. Poison (“Unskinny Bop”, quem nunca…), David Lee Roth, malhas de guitarra e sintetizador. Bala! Depois, veio o liceu e a adolescência e as influências eram tantas como as angústias. Em Lisboa, mais concretamente em Benfica, no eixo Sete Rios, onde ficava o D. Pedro V, e o Fonte Nova, onde se passavam os serões no pátio ao lado do Califa, quando os pais deixavam a malta sair até depois das nove, os azimutes musicais eram tão dispares como os rótulos: The Cure e Stranglers para os góticos; Sepultura para os metaleiros; INXS para os betos; Guns n’ Roses para os surfistas; e Smiths para os alternativos, e eu era, em doses mais ou menos iguais, um pouco de cada um. Por essa altura, passavam na RTP, dois programas fundamentais para quem gostasse de ouvir e, principalmente, descobrir música. O Outras Músicas, programa do Jazzé Duarte, que passava na RTP 2 aos sábados de manhã, e o Popoff, com a presença inconfundível da Sofia Morais. Quer um quer outro foram instrumentais na minha descoberta e afirmação de um gosto musical ecléctico, despreconceituoso e, acima de tudo, intransigentemente livre. O Outras Músicas até me levou a ir assistir ao vivo, no grande auditório da Gulbenkian, a um concerto do Stockhausen. Ainda por Lisboa havia, claro, o Pedro Adão. O Pedro era detentor de duas coisas fundamentais – um invejável bom gosto natural e discos. O Pedro tinha os discos, comprava discos, e sabia tudo o que era novidade. Para alguém como eu, que parasitava gostos musicais diversos, a maturidade musical do Pedro era uma espécie de El Dorado existencial. Do género, quando for grande quero ser como o Pedro. A panóplia de sabedoria audiófila do Pedro ia desde ter uma t-shirt do Meat is Murder (ou seria do Queen is Dead?) dos Smiths, a discografia completa da evolução Joy Divison / New Order, até saber de cor a letra completa da “dança nua” dos Essa Entente. Num outro mundo paralelo, havia a adolescência açoriana. A minha dupla nacionalidade, açoriano em Lisboa e português em São Miguel, levou-me, desde pequeno, a passar metade do ano na ilha. Juntando Natal, Páscoa e os 3 meses de verão, o tempo passado na ilha era quase tanto como no continente, sendo que do ponto de vista musical foi, indiscutivelmente, muito maior. Perceba-se que ter 15 anos em 1989 significava ser contemporâneo de “3 feet High and Rising” dos De La Soul, “Doolitle” dos Pixies, “Bleach” dos Nirvana e o homónimo primeiro álbum dos The Stone Roses. Se, no mesmo ano, em Lisboa, se ouvia o “funky cold medina” do Tone Loc ou o “pump up the jam” dos Tchenotronic, quando não se cantarolava o “like a prayer” da Madonna ou o “if I could turn back time” da sempre jovial Cher. Nos Açores, o ambiente musical era pautado por diametralmente diferentes matizes, que iam desde a extasiante Madchester, aos experimentalismos de Zoviet France e Skinny Puppy, passando pelo hedonismo dos B-52’s e o obscurantismo satânico de Diamanda Galas. E, a malta absorvia tudo com igual sede. Toda esta banda sonora é indissociável, mais se calhar do que das pessoas, de dois carros: o Volvo 340GL(?) do pai do Bernardo Rodrigues e a Renault 4L dos “minhocas”. Esses dois carros, as repetidas viagens entre surfadas, entre festas nas Furnas ou nas Sete Cidades, entre a Cascata e a Caldeira Velha, entre a “cidade” e as nossas casas ou, imagine-se, entre o Populos e o Cheers, às vezes em recuo, foram a discoteca perfeita para a melhor formação musical de toda uma adolescência. Porra, a aparelhagem na 4L valia mais do que o próprio carro! Mas, sim, na verdade, o mais importante nisto tudo, mais do que as ondas que surfamos, os temas que escutamos ou as miúdas que amamos, foram as amizades que fizemos, entre os versos de Rimbaud, ou os lamentos de Lautreamont, entre as batidas do Jazzmatazz do Guru ou os riffs da guitarra do Noel Gallagher. E, ainda havia a Universidade e as cassetes para as namoradas e a X-FM e os discos comprados na Contraverso e depois na Amazon e na FNAC ou as cópias de Cd’s feitas no duplo cd recorder da Panasonic e as festas e as malas de discos e, e, e, …

Tudo isto a propósito do desafio facebookiano do Diogo Cymbron para escolher 10 discos que tiveram influência no meu gosto musical. Do que fica exposto, penso que fica também claro que tal escolha seria impossível, mas e mesmo apesar de ter a maioria da minha colecção de discos encaixotada, olho, de relance, os poucos que estão espalhados aqui por casa e escolho, apaixonadamente, 10:
Keith Jarret – The Koln Concert
Astor Piazzolla . Kronos Quartet – Five Tango Sensations
Oasis – Definitely Maybe
The Stone Roses – The Stone Roses
The Divine Comedy – Promenade
Kruder Dorfmeister – The K&D Sessions
Maxence Cyrin – Novo Piano

2 comentários:

Anónimo disse...


Caro Pedro,
Este é um belo postal Pop e Cool. Belíssima viagem à tua banda sonora ( tão diferente da minha, mas essa é a riqueza dos Amigos ) e comovente homenagem ao teu Pai. Como somos feitos de mar salgado e de saudade intermitente voltamos fatalmente aos Fados. Se um dia voltar aos blogs seria com um de banda sonora...título : Put The Needle On The Record. :) É só uma facécia pois já passei essa onda. Não me arrisco a fazer uma playlist com os 10 discos. São tantos aos 50 e tantas vidas numa só que seria uma escolha errática. Faço-a para mim, com reserva mental :)
Boa Malha, como diria o Sir Riley
Shalom
JNAS

Pedro Arruda disse...

Thanks 🤙 salamalekum