terça-feira, julho 30
sábado, julho 27
Aos Açores, há sempre a gente a chegar (!)
Podem ser poucos mas, atraidos sabe-se lá porquê, aos Açores, há sempre gente a chegar.
Será o mistério? Que mistério? O que envolve? O que desafia? Serão os Açores um mistério esclarecedor? Não serão com certeza mistérios como os da imensidão quente de África. Mas, porventura, partilharão eles similiaridades, denotando ambos pouca permeabilidade, como que um sinal da fraca noção da efemeridade da vida que as gentes isoladas têm?
Com tanta pergunta, acredito que só mesmo os mais curiosos se importarão connosco e com o nosso percurso, diferente do de outras colónias do Portugal de outrora. Fica, no entanto, a certeza de que a viagem está sempre no nosso horizonte: Para lá ou para cá; Entre o futuro e o passado; Entre o conceito e o preconceito; Entre as ilhas e, sobretudo, entre as gentes.
sexta-feira, julho 26
Walk&Talk, uma homenagem à 'A ILHA'
quinta-feira, julho 25
terça-feira, julho 23
Pérolas, colhidas ali, n'A Esquina do Rio
(...)
Ficar
Na semana passada descobri os Açores. Melhor dizendo, ajudaram-me a descobrir os Açores, insistindo comigo para que fosse. Fiquei muito contente por ter ido: estive cinco dias em São Miguel e fiz quase setecentos quilómetros por estradas grandes e por estradas pequenas, indo a todos os recantos e parando nos mirantes que encontrei. Comi bem em bombas de gasolina e em esplanadas em cima do mar; no Hotel onde fiquei e, em restaurantes onde fui e em casa de amigos que me acolheram. Na estrada, por todo o lado me ajudaram com indicações de caminhos e sugestões do que ver. Fiquei rendido a São Miguel e com vontade de descobrir o resto dos Açores. Tive a boa sorte de ficar no Hotel Terra Nostra, nas Furnas, e não podia ter ficado melhor. O Hotel está num parque natural, único, cuidadíssimo, onde é um prazer passear, e que mostra a diversidade da flora da ilha. Não é muito fácil para mim descrever a natureza, mas este é daqueles locais onde apetece ficar, ao qual se quer voltar. No meio do parque está um enorme tanque circular, de água termal, quente, onde se entra para perceber que o descanso não é uma palavra vã e o conforto é um conceito que não se esgota no óbvio. Hei-de voltar a este Terra Nostra - já me tinham dito que é um local que exerce fascínio. Comprovei ser completamente verdade.
(...)
Provar
Desta vez não vou falar de um só restaurante mas do que provei em vários sítios. Primeiro, falo do mar: de uma abrótea e de um veja que me acolheram no Terra Nostra e que reconfortaram das viagens. De umas lapas grelhadas das quais viciosamente abusei numa esplanada na Ribeira Grande, acompanhado por um branco seco, local, o Curral Atlantis com acidez adequada aos petiscos do mar. Mas, sobretudo, devo destacar um peixe que ignorava, de textura e sabor até então desconhecidos, e que mesa amiga me deu a provar - um rocaz, fantástico. Mas quero também falar do queijo de São Jorge, acompanhado de chutney de ananás e servido com o Czar, um vinho generoso do Pico e que deve o seu nome à preferência que os titulares da coroa imperial russa tinham por ele, ao ponto de comprarem toda a produção. E já tenho saudades da carne, bem cozinhada, bem temperada e sobretudo tenríssima, a puxar por um vinho tinto, do Pico, o Basalto, de uva americana, servido refrescado, a acompanhar bem estes petiscos carnívoros. E por falar isso, remato com o célebre cozido das Furnas, que leva sete horas a fazer em buracos no chão vulcânico, com os enchidos da região - de que se destaca a morcela - com batata doce e inhame ao lado do entrecosto, da couve e do repolho. Imperdível, a gastronomia açoriana.
(...)
Ver
De há uns anos a esta parte assistia à presença da Galeria Fonseca Macedo, de Ponta Delgada, na Arte Lisboa, na FIL, onde tem tido uma presença que chamava a atenção. No meio das minhas voltas micaleenses da semana passada, tive a sorte de coincidir com uma nova exposição - "Austeridade" de Ana Vidigal, e "Osso" de Paulo Brighenti, ambas possíveis graças à colaboração com a galeria Baginski, de Lisboa. Situada no centro de Ponta Delgada a "Fonseca Macedo" é uma lufada de ar fresco, dedicada à arte contemporânea, e que tem desenvolvido um núcleo de coleccionadores açorianos, alguns dos quais conheci naquela noite. Gostei de rever estes trabalhos recentes de Ana Vidigal e de Paulo Brighenti, de os sentir ali apreciados, a meio do Atlântico. Nada como uma noite de abertura de uma galeria de arte contemporânea para nos permitir tomar o pulso a uma sociedade - ver quem vai ser visto, quem vai por dever de ofício, ou quem vai porque gosta de descobrir. Felizmente foi uma noite, para muitos, de descoberta.
Textos da autoria de Manuel Falcão, no Jornal de Negócios
Ficar
Na semana passada descobri os Açores. Melhor dizendo, ajudaram-me a descobrir os Açores, insistindo comigo para que fosse. Fiquei muito contente por ter ido: estive cinco dias em São Miguel e fiz quase setecentos quilómetros por estradas grandes e por estradas pequenas, indo a todos os recantos e parando nos mirantes que encontrei. Comi bem em bombas de gasolina e em esplanadas em cima do mar; no Hotel onde fiquei e, em restaurantes onde fui e em casa de amigos que me acolheram. Na estrada, por todo o lado me ajudaram com indicações de caminhos e sugestões do que ver. Fiquei rendido a São Miguel e com vontade de descobrir o resto dos Açores. Tive a boa sorte de ficar no Hotel Terra Nostra, nas Furnas, e não podia ter ficado melhor. O Hotel está num parque natural, único, cuidadíssimo, onde é um prazer passear, e que mostra a diversidade da flora da ilha. Não é muito fácil para mim descrever a natureza, mas este é daqueles locais onde apetece ficar, ao qual se quer voltar. No meio do parque está um enorme tanque circular, de água termal, quente, onde se entra para perceber que o descanso não é uma palavra vã e o conforto é um conceito que não se esgota no óbvio. Hei-de voltar a este Terra Nostra - já me tinham dito que é um local que exerce fascínio. Comprovei ser completamente verdade.
(...)
Provar
Desta vez não vou falar de um só restaurante mas do que provei em vários sítios. Primeiro, falo do mar: de uma abrótea e de um veja que me acolheram no Terra Nostra e que reconfortaram das viagens. De umas lapas grelhadas das quais viciosamente abusei numa esplanada na Ribeira Grande, acompanhado por um branco seco, local, o Curral Atlantis com acidez adequada aos petiscos do mar. Mas, sobretudo, devo destacar um peixe que ignorava, de textura e sabor até então desconhecidos, e que mesa amiga me deu a provar - um rocaz, fantástico. Mas quero também falar do queijo de São Jorge, acompanhado de chutney de ananás e servido com o Czar, um vinho generoso do Pico e que deve o seu nome à preferência que os titulares da coroa imperial russa tinham por ele, ao ponto de comprarem toda a produção. E já tenho saudades da carne, bem cozinhada, bem temperada e sobretudo tenríssima, a puxar por um vinho tinto, do Pico, o Basalto, de uva americana, servido refrescado, a acompanhar bem estes petiscos carnívoros. E por falar isso, remato com o célebre cozido das Furnas, que leva sete horas a fazer em buracos no chão vulcânico, com os enchidos da região - de que se destaca a morcela - com batata doce e inhame ao lado do entrecosto, da couve e do repolho. Imperdível, a gastronomia açoriana.
(...)
Ver
De há uns anos a esta parte assistia à presença da Galeria Fonseca Macedo, de Ponta Delgada, na Arte Lisboa, na FIL, onde tem tido uma presença que chamava a atenção. No meio das minhas voltas micaleenses da semana passada, tive a sorte de coincidir com uma nova exposição - "Austeridade" de Ana Vidigal, e "Osso" de Paulo Brighenti, ambas possíveis graças à colaboração com a galeria Baginski, de Lisboa. Situada no centro de Ponta Delgada a "Fonseca Macedo" é uma lufada de ar fresco, dedicada à arte contemporânea, e que tem desenvolvido um núcleo de coleccionadores açorianos, alguns dos quais conheci naquela noite. Gostei de rever estes trabalhos recentes de Ana Vidigal e de Paulo Brighenti, de os sentir ali apreciados, a meio do Atlântico. Nada como uma noite de abertura de uma galeria de arte contemporânea para nos permitir tomar o pulso a uma sociedade - ver quem vai ser visto, quem vai por dever de ofício, ou quem vai porque gosta de descobrir. Felizmente foi uma noite, para muitos, de descoberta.
Textos da autoria de Manuel Falcão, no Jornal de Negócios
segunda-feira, julho 22
quinta-feira, julho 18
quarta-feira, julho 17
Noite de Festa
Inserido no AMOSTRAM’ISSE”– Mostra de Cinema dos Açores, foi exibido o filme Noite de Festa, do micaelense Nuno Costa Santos (em parceria com
Tiago de Carvalho e Nuno Simões, como gosta de realçar o autor), em estreia na
ilha Terceira, no passado dia 4 de Junho, no Centro Cultural e de Congressos.
Trata-se de um filme que
encaixa na área do documentário, embora ficcionado, onde acompanhamos o
regresso de Nuno Costa Santos a São Miguel, escritor e guionista a residir em
Lisboa, já com vários livros publicados, colaborador assíduo de várias
revistas, e já teve também um programa de televisão no Canal Q (“Melancómico”).
Esse regresso tem um motivo:
anda à procura dos seus discos de vinil, que tanto influenciaram a sua
adolescência, e lhe moldaram mesmo o carácter … Será uma viagem onde se mistura
o antigo, o passado e o recente, assim como as novas e desconhecidas realidades
da ilha.
De facto, como também refere
Nuno Costa Santos algures, as músicas e bandas que ouvimos na adolescência (e
pós-adolescência, permitam-me acrescentar) são as mais importantes das nossas
vidas, pois é uma fase de definição da nossa identidade e personalidade – e
esse é o mote do filme, conjugado com uma análise às diferenças que encontra em
São Miguel nos últimos 20 anos, desde que saiu para Lisboa.
O filme consegue passar a
sua mensagem, intenção aliás da equipa responsável, partindo de uma história
individual, mas com a qual todos se identifiquem – principalmente se pertencem
à mesma geração dos realizadores (35-40 anos). E foi o que se passou comigo,
vibrando ao ver tantas referências musicais que fazem também parte da minha
adolescência, fazendo-me também recordar o que foi sair da ilha para estudar em
Lisboa, e o contacto com novas realidades musicais.
Foi maravilhoso ver
referências seminais aos The Cure, as capas dos discos de vinil dos Throwing
Muses, ouvir música dos Dead Can Dance, e culminar tudo
com várias alusões aos Stone Roses… O filme tem uma curiosa frase de Nuno Costa
Santos, ao referir-se a essas bandas, “que
já ninguém as quer ouvir hoje em dia” – pois felizmente não é verdade, e
temos o Optimus Primavera Sound a provar isso mesmo, festival que decorreu recentemente
no Porto, onde as bandas que vingaram este ano foram exatamente os My Bloody
Valentine, Dead Can Dance e a grande presença e atuação de Nick Cave!
Termino com uma frase de
Nuno Costa Santos, num artigo da Azorean
Spirit (n.º47), que resume, e como sempre, bem, o essencial do que aqui se
disse: “Agora quem diz discos perdidos
também diz milagres encontrados. Até já, numa sala de cinema perto de si.»
Miguel
Costa
(Outro texto sobre o filme da autoria do terceirense Miguel Costa e publicado no "Diário Insular")
Noite de transgressão
Inspirado no filme Noite de festa de Nuno Costa Santos e (Outros autores)
Noite de
Transgressão.
1. Introdução
2.
O meu pai
3.
O Carlos
4.
O Hélder
5.
O Nuno
6.
A Sheila
1.
Introdução
Vi no outro dia
o filme do Nuno Costa Santos Noite de Festa.
É um
documentário. Normalmente documentário é o nome que se dá a um filme que é mais
interessante que a média dos que são feitos para aí, mas que não teve cheta
para ser produzido.
Percebo
bastante disso, pois a minha vida é ter ideias para as quais ninguém tem
dinheiro para produzir.
Mas ficar
indiferente a um tipo, que a chegar aos 40, regressa à sua ilha para resgatar
os seus discos perdidos é impossível. A música é transversal e universal. Toca
a todos. Até a um anormal como eu. Todos nós temos os nossos discos, as nossas
músicas. Somos viralmente interseccionados por ritmos, sequências de notas e
códigos que de forma um tanto ou quanto estranha nos despertam sensações e
emoções. Talvez por isso seja muito
estranho escrever sobre música. Porque não se escreve sobre música, a música é
que se escreve. E isso devia chegar.
No caso
específico do Nuno e do seu grupo de amigos, não consigo colocar a questão numa
estrita procura por discos efectivamente perdidos, embora acredite que existam
uns quantos mistérios. Até eu tenho discos do Pascoal em casa.
Porém, creio
que a questão passa um pouco por revisitar os sentimentos. Do sentir a música
como eles sentiam. É uma viagem emociomusical.
Olhava para o
grupo de amigos do Nuno como betos. Já eu, com educação e condições sócio
económicas semelhantes, era igualmente beto. Mas eu e os meus amigos éramos betos
transgressores.
Enquanto eles
deram festas memoráveis com alta música, a que muito poucas fui, pois eram
festas de betos, nós não demos festas. Não fizemos amigos para a vida e muito
menos perdemos discos que justificam reencontros. Não tínhamos tempo para isso.
Fugir da
polícia, ser preso, ir para as urgências do hospital, tentar fazer descarrilar
comboios, pegar fogo a carros tomavam muito tempo. Não dava para organizar
festas.
Que estupidez.
O que eu não
perdi?
Foi o que
pensei em alguns momentos do filme.
Hoje, os amigos
do Nuno, são homens bem postos, directores disto e aquilo, são artistas, são
agricultores de sucesso. São inteligentes, e porque não dizê-lo, bonitos.
(Repare-se que quando era um beto transgressor não podia dizer isso). E acima
de tudo, são cultos.
Já eu e os meus
amigos somos publicitários, prostitutas, pianistas em cabarets, esteticistas,
taxistas e cabeleireiras. Somos feios. Não nos damos e não temos nada em comum.
Nem uma coisa tão simples e vibrante como a música.
Nasci para ser
beto e arruinei o meu destino porque ouvi Doors cedo demais.
Uma vez calhou ser Erik Satie. É claro que não me podia esquecer deste. McCoy Tyner foi outro exemplo de um CD e artista inesquecível que me veio parar aos ouvidos por essa via. Mas o Carlos tem um grande à vontade no Jazz, por isso neste campo é quase nosso senhor. Com ele vieram os clássicos Miles Davis, John Coltrane, Chet Baker, Duke Ellington. Veio também a certeza que o Cole Porter em conjunto com o George e o Ira Gershwin devem ter escrito para aí 90% da história do jazz.
Mas o facto curioso dos meus discos perdidos com o Hélder, é que eu não tenho discos perdidos com ele ou em casa dele. Os discos perdidos dele estão comigo, em minha casa.
Abria-se de novo a porta para a minha verdadeira natureza eclética. Não se pode renegar ao que somos. Eu nasci no meio da colecção de discos, sem grande lógica, do meu pai e por mais que a insegurança adolescente me quisesse fazer pertencer ao grupo dos mais independentes e alternativos a pirosidade está-me no sangue.
Abria-se de novo a porta para a minha verdadeira natureza eclética. Não se pode renegar ao que somos. Eu nasci no meio da colecção de discos, sem grande lógica, do meu pai e por mais que a insegurança adolescente me quisesse fazer pertencer ao grupo dos mais independentes e alternativos a pirosidade está-me no sangue.
2. O meu Pai
Uma vez calhou ser Erik Satie. É claro que não me podia esquecer deste. McCoy Tyner foi outro exemplo de um CD e artista inesquecível que me veio parar aos ouvidos por essa via. Mas o Carlos tem um grande à vontade no Jazz, por isso neste campo é quase nosso senhor. Com ele vieram os clássicos Miles Davis, John Coltrane, Chet Baker, Duke Ellington. Veio também a certeza que o Cole Porter em conjunto com o George e o Ira Gershwin devem ter escrito para aí 90% da história do jazz.
Mas o facto curioso dos meus discos perdidos com o Hélder, é que eu não tenho discos perdidos com ele ou em casa dele. Os discos perdidos dele estão comigo, em minha casa.
Abria-se de novo a porta para a minha verdadeira natureza eclética. Não se pode renegar ao que somos. Eu nasci no meio da colecção de discos, sem grande lógica, do meu pai e por mais que a insegurança adolescente me quisesse fazer pertencer ao grupo dos mais independentes e alternativos a pirosidade está-me no sangue.
Abria-se de novo a porta para a minha verdadeira natureza eclética. Não se pode renegar ao que somos. Eu nasci no meio da colecção de discos, sem grande lógica, do meu pai e por mais que a insegurança adolescente me quisesse fazer pertencer ao grupo dos mais independentes e alternativos a pirosidade está-me no sangue.
2. O meu Pai
O meu pai era
uma besta. Não por me bater, ou tratar particularmente mal. O meu pai era uma
besta, como muitas bestas de outros pais, porque não me ligava nenhuma.
Verdade seja
dita que se diferenciava das outras bestas por uma questão em particular: era
dono de uma discoteca.
Já viram a
sorte de um beto transgressor cujo o pai tem uma discoteca?
Lá em casa
havia um Tecnichs SL 1200 e uma colecção interminável de discos.
A besta do meu
pai, ao que tenho ideia, não tinha gosto musical. Como boa besta que era, tinha
tudo.
Já viram a
sorte de um beto transgressor cujo o pai tem uma discoteca e que em casa tem
todos os discos do mundo?
Todos os discos
do mundo não. Ele tinha todos os discos mainstream.
Mesmo assim, já
viram a sorte de um beto transgressor cujo o pai tem uma discoteca e que em
casa tem todos os discos do mundo, menos os que o Nuno e os amigos mandavam vir
da Contraverso em Lisboa?
Mais velho,
também fui muitas vezes à Contraverso comprar discos. Mas não era a mesma
coisa. Pelo menos a julgar pela total ausência de relação quando lá ia. Já o
Nuno que picava discos pelo telefone, para os encomendar, deve ter ficado no
imaginário dos Contraversos.
Mais uma vez se
prova que muitas vezes não é o ter à disposição, mas sim o querer ter.
De qualquer das
formas, ter à disposição aquela infindável colecção de vinis era qualquer coisa
de maravilhoso.
Nesta fase não
conhecia nada. Era virgem até às orelhas.
Qual terá sido
a sensação de ter ouvido os Sultans of Swing dos Dire Straits pela primeira
vez? E o The Wall dos Pink Floyd?
E a discografia
completa dos Beatles, descoberta faixa a faixa, música a música?
Os meus amigos
ouviam Ana Faria e os Queijinhos frescos e eu já ouvia o Asas e Penas do Jorge
Palma ou o Ar de Rock do Rui Veloso.
Qualquer nome
que me falassem, sem excepção, estava na colecção de discos do meu pai. Roxy
Music, Fleetwod Mac, Bananarama, Supertramp, Police, KC & The Sunshine Band
foram os que mais me passaram pelas mãos, mas a lista é interminável.
O meu pai até
não ouvia muita música porque era uma besta. Já eu era só uma criança inocente,
com muito tempo livre e muitos discos à disposição.
Estava sempre a
ouvir e a descobrir coisas novas só por mim. Sem ninguém dizer é bom, é mau, é
assim assim. Tal como um virgem que quando perde a virgindade quer lá saber se
é bom, ou se é mau. Desde que seja.
3. O Carlos
Já viram a
sorte de um beto transgressor cujo o pai tem uma discoteca e que em casa tem
todos os discos do mundo, menos os que o Nuno e os amigos mandavam vir da
Contraverso em Lisboa?
Seria mesmo
sorte ter tantos discos à disposição?
Claro que não.
Eclético demais
para se formar um critério e um verdadeiro gosto musical.
A besta do meu
pai obrigava-me a trabalhar na discoteca durante o verão. E quanto a isso só
posso dizer uma coisa: obrigado besta.
Perder o meu
tempo a furar ondas na praia do pópulo e a tentar engatar miúdas com conversas
verdadeiramente idiotas, quando podia passar o dia mergulhado em discos?
Era
inacreditavelmente má a música que a maioria dos clientes compravam. Artistas
dos quais nunca tinha ouvido falar sequer.
Mas eu também
não andava longe da mediocridade. A ideia que tenho da altura era que ouvia
Madonna e tretas desse género. Agora... agora é giro ouvir o Lucky Star, mas
acreditem que na altura era verdadeiramente deprimente.
O Carlos mudou
a minha vida musical naquela altura e fez de mim um homenzinho. Ele trabalhava
na discoteca e percebia de música. Aliás ainda percebe. E muito.
Sempre que me
via a escolher alguns cd’s dizia:
-
Não vais ouvir essa merda, pois não?
E ponha-me na
mão outro disco qualquer.
A vida já não era a mesma. Não dizia conversas idiotas durante o dia às miúdas, para ter doutas conversas sobre música à noite. E mais giro, tinha dinheiro para lhes pagar copos.
A vida já não era a mesma. Não dizia conversas idiotas durante o dia às miúdas, para ter doutas conversas sobre música à noite. E mais giro, tinha dinheiro para lhes pagar copos.
Aqui que
ninguém nos ouve, apenas lê, muito piratiei eu. Bastava que o Carlos me desse
uma boa dica que aquilo passava de imediato para uma cassete para estudar em
casa.
Congeminámos
juntos e telepaticamente uma revolução na discoteca. Só encomendar coisas fixes
e obrigar os maus clientes a ouvir boa música.
Não deu certo,
basicamente, porque a besta do meu pai, quando via a nota de encomenda, entrava
em cena e dizia:
-
Esta merda é para vender discos.
E com razão.
Aqueles que
pensávamos serem maus clientes, porque tinham um péssimo gosto, eram no fundo
os nossos mecenas. Aqueles que permitiam passarmos tardes a ouvir música e a
falar de música. Com um shot ocasional de bagaço, à vez, ali ao lado no Aliança,
que para ouvir um bom som tem que ser em etéreo.
4. O Hélder
Paralelamente
havia o meu tio Hélder, que era doido na altura, mas que agora já está bom.
Como profissão partia carros, casas, dentes, pernas, costelas e comia copos de
vidro a olhar fixamente para o DJ do Cheers quando passava música de merda. Era
quase sempre.
A primeira vez
que coloquei uma cassete no carro dele foi ejectada dois segundos depois e
atirada pela janela. Era o The time of my life, do Bill Medley e da Jennifer
Warnes.
-
Que merda é esta?
De seguida
meteu John Zorn. Que coisa demoníaca era aquela? Jesus nosso senhor.
Não entendi
nada. Mas passei a respeitar o gosto musical do meu tio. Merdas daquelas no
carro dele não.
Agora digam lá
que não é uma sorte para um beto transgressor cujo o pai tem uma discoteca e
que em casa tem todos os discos do mundo, menos os que o Nuno e os amigos
mandavam vir da Contraverso em Lisboa, e ainda por cima tem um tio que atira
música de merda pela janela e com a outra mão nos dá um bom punhado de discos
vinil, em ótimo estado, com pérolas como o primeiro disco dos Massive Attack, o
Blue Lines de 1991, tinha eu uns 16 anos?
Pelo meio, o
tal John Zorn, discos do Izumi Kobayashi, Bel Canto, David Sylvian, Nick
Cave. Mas confesso uma coisa, a maioria
dos nomes serão tão independentes ou alternativos que nem os consegui reter. Há
importações do Japão e bandas que nunca ouvi falar. Aliás, nenhum amigo meu conhece
o Heinner Goebbels para além do meu tio, se é que ele existe mesmo. Mas o disco
“Der mann im fahrstuhl” é fabuloso.
Como o meu tio
era doido, desconfio que ele tinha um amigo que percebia muito de música. De
vez em quando ponho a tocar uns quantos discos desconhecidos e são todos eles bons.
Sem excepção.
Não foi a
influência mais pedagógica porque vendo bem não há qualquer pedagogia em atirar
cassetes pela janela fora, muito menos um percurso para chegar ao John Zorn
deve ser feito daquela maneira. Mas a atitude, ó meu deus, a atitude rock star
decadente e deliquente era música para os meus ouvidos.
O Mick Jagger
queria ser como ele e a Bo Derek queria estar com ele.
Eu também
queria muito a Bo Derek. Mas primeiro tinha que perceber John Zorn.
Foi o papel do
Nuno fazer-me perceber John Zorn.
Colega de casa,
ele no primeiro ano de economia ou gestão, eu ainda no 12º ou 11º, não me
recordo bem.
Do que me
lembro é que o Nuno era um paz de alma. Não sei como ele me aturou tanto tempo.
A mim, e a cambada de betinhos transgressores que metia dentro de casa a
qualquer hora do dia ou da noite.
Apesar das boas
influências do meu pai, do Carlos e do Hélder a verdade é que também continuava
a ouvir música muito duvidosa. E o pior de tudo é que não tinha qualquer pudor
em por Guns’n’Roses a tocar. O que não deve ter sofrido o Nuno.
Mas a verdade é
que com a minha idade toda a gente ouvia os Guns’n’Roses e depois os Nirvana.
Isso não tinha nada de mal. Éramos pirralhos e era seguro gostar do que todos
gostam.
Não tinha nada
de mal?
Se tivesses o
gosto musical do Nuno deveria ter e muito. Enquanto eu fui a um dos últimos
concertos de Nirvana na praça de touros de Cascais, o Nuno já era um Senhor. Já
tinha ido ver Einstuerzende Neubauten e Young Gods.
Maravilhavam-me
os relatos dos objectos que eram usados para fazer som, dos andaimes em palco,
todo um aparato independentista que nada tinha a ver com o Top + que passava na
RTP 1 e na minha aparelhagem.
Ele ouvia The
Fall, toda aquela onda de Madchester: Happy Mondays, Joy Division, Primal
Scream e gostava muito dos United Future Organization. Depois ainda vinham os
Cocteau Twins, Stone Roses, os Blur, os Charlatans, e mais os Smiths, e My
Bloody Valentine, Pixies. Era uma armada invencível que agora sim, iria mudar a
minha vida para sempre.
Porra, como é
que o Nuno, só dois anos mais velho que eu, tinha um gosto musical
extraordinário com cenas tão fixes e tão cheias de onda e eu ouvia
Guns’n’Roses?
Chamei uma data
de amigos lá a casa e vendi todos os meus discos de merda. Incluindo o tal de
Guns’n’Roses.
Dois, três anos
mais tarde, quando o Nuno me comunica que o pai tinha comprado um apartamento e
que ele iria sair lá de casa foi um momento triste. O Nuno era o meu ganha pão
musical. Podíamos perfeitamente ter mantido uma relação, fosse ela suportada
nos discos ou mesmo na nossa simples convivência. Mas eu continuava muito mais
motivado em transgredir e a por em risco e minha vida e a vida dos meus amigos
fazendo coisas verdadeiramente parvas.
O pai de um
amigo meu, que era advogado, ameaçava-o sempre dizendo que a polícia nos andava
a vigiar, a ver se ele se portava bem. Anos mais tarde, numa festa devassa, com
música péssima, em casa deste meu amigo descobrimos numa gaveta do escritório
um envelope e lá dentro estavam fotografias nossas e vários relatórios
policiais.
Se eram
verdadeiros, ou falsos, não sei. Sei que a festa acabou naquele momento. E
devemos ter andado uma semana tipo meninos do coro até voltar a atirar
televisões do 14º andar para a rua.
Por melhor
banda sonora transgressora que fossem os Clash, não foi, nem era o suficiente
para que me deixasse de sentir órfão daquele grande mentor que foi o Nuno.
6.
A Sheila
Mesmo assim o
Nuno tinha deixado pistas suficientes para me orientar sozinho. Não deu
propriamente a cana, mas deixou muito peixe.
Já na
faculdade, tal como qualquer bom português, não aprendi rigorosamente nada, nem
fiz grande amizades musicais.
Foi aí que
percebi que estas pessoas tão especiais que tinham feito parte da minha vida
musical tinham também outra propriedade: eram raras.
Isto fez-me
valorizar ainda mais a Sheila quando a conheci.
A Sheila
simboliza para mim a música na publicidade, pois foi das pessoas mais versadas
na matéria que encontrei. Quando falo dos discos perdidos da Sheila, falo de discos
que o mundo perdeu. Anne Shelton, Ink Spots, Lew Stone Band, Lale Anderson, Ray
Noble e tantos outros. É impressionante o legado de discos dos anos 20, 30 e 40
que me acompanham até hoje.
Se a tentasse
definir diria que a Sheila é uma caralha com um gosto retro kitsch. Aliás, eu
próprio não sabia que era retro kitsch até a Sheila me mostrar um punhadinho de
músicas compiladas numa banda sonorosa fabulosa: The Singing Detective.
A Sheila ouvia
José Cid, Tony de Matos e Vítor Espadinha sem qualquer tipo de vergonha na
cara.
Há um pormenor.
A Sheila era publicitária.
Um publicitário
não se fecha sobre um estilo, um género, moda ou onda.
Se “Dou-te um
doce” da Lena D’Água funciona melhor para o anúncio do Corneto do que aquela
música muito gira dos Velvet Underground, pois que seja a Lena. Um anúncio de
bacalhau prestar-se-á muito melhor a uma música do Quim Barreiros do que Pshyco
Killer dos Talking Heads.
Esta é a
inabalável despreconceitualização da música que só a publicidade me conseguiu
trazer. São todos filhos de Deus. O Pedro Abrunhosa está ali ao lado do Freddie
Mercury. É claro que quando abre boca se percebe que o Pedro está fora do seu
elemento. Mas se só abrir a boca quando mandamos está por direito próprio
naquele eclético grupo que habita o meu imaginário musical.
Foi no momento
em que coloquei a tocar Lionel Richie na agência e não fui gozado que percebi
que tinha atingido a minha maturidade musical.
Pior ainda
quando alguém como o teu director criativo acha graça a quereres colocar uma
música de jazz dos anos 20 num filme futurista. Ou que a Rose Marie do Slim
Whitman fica genial num filme que retrata uma manifestação violenta.
Pela primeira
vez na minha vida o meu gosto musical era uma coisa gira. E eu ganhava dinheiro
com isso.
É claro que a
musica digital muito me ajudou a expandir conhecimentos. Quando ouvia algo de
novo, havia sempre um referência e atrás dessa referência uma outra referência.
Pelos vistos há sempre alguém que “samplou” alguém.
É um movimento
circular infinito. A música não começa ou acaba. Continua.
Fica apenas a
enorme curiosidade sobre o que fará o meu tio Hélder quando partilhar com ele o
“Love is strange” da banda sonora do Dirty Dancing no Spotify.
Abençoada era
digital.
Agradecimentos
Nuno Costa
Santos pelo convite para escrever esta peça.
O meu pai é o
António Soares do Rego. O Carlos é o Carlos Pacheco. O Hélder é o Hélder Soares
do Rego. O Nuno é o Nuno Alves e a Sheila é a Sheila Redburn Nunes.
Banda Sonora
1. Introdução:
Devo - Whip it
2.
O meu pai: Dire Straits - Lions
3.
O Carlos: John Field - Rondo in Eb
4.
O Hélder: Masaru Satoh & His Orchestra - Yojimbo Main
Title
5.
O Nuno: Kurr - Seoul
6.
A Sheila: The Teddy Bear’s Picnic - Henry Hall e Val
Rosing
Bónus: The
Doors - Queen of the Highway
Luís Rego
Luís Rego
(Pedi ao Luís Rego para, do ponto de vista dele e do seu grupo de amigos, partisse do filme "Noite de Festa" para falar dos seus discos e do seu mapa musical. O resultado foi esta bela e muito divertida jornada cronística - que emocionada e abetalhadamente agradeço).
segunda-feira, julho 15
Faltam 9 dias!
Faltam 9 dias para o fecho da recolha de fundos para o Ziphius através da plataforma Kickstarter.
quarta-feira, julho 10
segunda-feira, julho 8
What lies beneath the Azores
quinta-feira, julho 4
O Máximo...
Porque o poder de síntese também é importante!
A traça arquitetónica ao estilo Art Deco foi sublimada com as obras de recuperação do espaço, que contou com a introdução de novos elementos e materiais contemporâneos, que vão de encontro aos novos espaços como a zona Wellness e as salas para eventos.
Junta-se ao conforto e modernidade do hotel o restaurante TN, que coloca a num novo patamar os produtos açorianos.
foto: Paulo Goulart Reis
A traça arquitetónica ao estilo Art Deco foi sublimada com as obras de recuperação do espaço, que contou com a introdução de novos elementos e materiais contemporâneos, que vão de encontro aos novos espaços como a zona Wellness e as salas para eventos.
Junta-se ao conforto e modernidade do hotel o restaurante TN, que coloca a num novo patamar os produtos açorianos.
foto: Paulo Goulart Reis
quarta-feira, julho 3
segunda-feira, julho 1
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